26 de dez. de 2006

Cidade Baixaria

Conheci a Cidade Baixa há cerca de dez anos, logo quando vim morar em Porto Alegre. Na época, residia no centro e a Loureiro da Silva era uma linha mágica que separava o Centro velho, cinza e decaído desse bairro boêmio, com seus arvoredos generosos e suas gentes alegres. Em realidade, dois locais dividiam minha preferência na hora de beber uma boa cerveja gelada e pensar na vida: o bar flutuante do Guaíba, melhor escolha nos dias em que havia pôr-do-sol ou que a temperatura favorecia, e os bares infinitos da Cidade Baixa.
Três anos e pouco depois, acabei me mudando, de mala mas sem cuia, para a Cidade Baixa. Lá pude aprofundar ainda mais minha cidadania porto-alegrense, nas discussões políticas, culturais e mesmo inúteis regadas a, claro, boas doses de cerveja. Lá descobri que o bairro tinha uma localização perfeita; via de acesso a quase todos os cantos da cidade, fica ao lado do centro, diametralmente oposto à Osvaldo Aranha - isso sendo um ponto a favor - e banhado pela Redenção. Além disso, contava com toda uma sorte de serviços, de forma que muito poucas vezes fazia-se necessário meu deslocamento aos outros pontos do arraial.
Pois, em determinada época, percebi que o bairro havia sido invadido por uma horda de flanelinhas, sendo a maioria deles disposta a destruir a civilização e a cultura. O problema, para mim, não era nem tanto os flanelinhas, pois na época eu não tinha carro, mas os tipos suspeitos e mal-encarados que assomavam junto. E houve também uma invasão de criancinhas vendendo todo o tipo de coisas, incluindo aí coisas que não deveriam ser vendidas. "Onde, diabos, está o Conselho Tutelar?", eu pensava.
Foi mais ou menos nessa época em que fui assaltado. Uma meia dúzia de indivíduos bonezudos aproximou-se de mim e de meu amigo quando tomávamos o sorvete ordinário do bairro. Blefando que estavam armados, levaram dez reais meus. A sorte foi o pequeno valor do furto, embora o estrago pudesse ter sido bem maior. O azar foi a sensação de impotência frente à falta completa de policiamento. Apesar da nítida sensação de que não estavam armados, nós dois apanharíamos com louvor daquela pequena corja caso esboçássemos reação. Na seqüência ao episódio, passei por momentos de liberdade vigiada, quando eu saía à noite mas desconfiava de qualquer vulto que se aproximava.
Agora faz pouco mais de um ano que minha rua - a José do Patrocínio - transformou-se na nova Osvaldo. Atraídos por cerveja a preços populares, os tipos mais estranhos - normalmente vestindo preto ou calçando AllStar - tomaram de assalto minha vizinhança. Isso em si não representaria muita coisa, não fosse o fato de que boa parte deles gosta de consumir uma certa erva ilegal. Outra parte gosta de aspirar fileirinhas do pozinho branco - isso tudo a céu aberto, em plena rua, principalmente na esquina com a Sarmento Leite. Então, obviamente, a concentração de traficantes e o sortimento de meliantes aumentou como nunca visto dantes!
Os pedintes chegam e dizem que estão fazendo um favor em não assaltar. E praguejam e ameaçam caso não levem os trocadinhos solicitados. Os bonezudos andam livremente pelas ruas, contam que recém saíram da cadeia e que vão "dar um estouro" caso não se lhe passe o dinheiro e o celular. E os flanelinhas, incólumes e impolutos, zelam pelo patrimônio alheio já que o governo não o faz.
Ah, e a polícia? Bom, para não ser injusto, vejo eventualmente policiais fazendo blitz na esquina mais tranqüila e iluminada (da Lima com a República), no horário mais movimentado e seguro (até a meia-noite). Na esquina do pó e nas demais ruas escuras e, agora, obscuras do bairro, assim como nos horários em que mais se faz supor necessário o policiamento, passam de relance, às vezes até acenando para seus insuspeitos freqüentadores. Como que dissessem: "Aproveitem a noite!"



21 de dez. de 2006

Jogo de Interesses

Quando alguém é carente,
é muito fácil ser amável, gentil e solícito.
Há reais mérito e sinceridade
quando se deseja em escambo
o afeto de outrem?
A lealdade não é virtude,
é apenas requisito de sobrevivência.
Tudo são negociatas
e os sentimentos são a moeda corrente.
Quem semeia torpedos colhe bombas de silêncio!

20 de dez. de 2006

Das Lacunas

Pois faz tempo que quero escrever algo, mas não me vem a inspiração. Assuntos bons surgem, idéias interessantes também, mas não consigo estruturar um texto. É como se as palavras houvessem fugido para o mato e, escondidas atrás das árvores, ficam à espreita, caçoando da minha procura infrutífera.
Não apenas me faltam palavras. Não sei exatamente o que gostaria de dizer, que tipo de emoção passar. É um infinito condensado de dúvidas e indecisão. Precisamente isso! Então, penso e não chego a texto algum. Ah, bons tempos aqueles em que conseguia escrever poemas piegas!! Hoje não passo do pensamento vacilante, do ensaio hesitante, da tentativa cambaleante e... de concreto, nada. Minto! De concreto, apenas as paredes desnudas do novo habitáculo que irá me abrigar, e a marquise que caiu quase em cima de mim.
Parece que minha capacidade de produção textual foi-se com a matrícula trancada da universidade. Mas pode ser também outro o motivo da inspiração fugidia: o vazio de emoções que se encontra em mim. Mesmo sem ter culpa, fui jogado nesse limbo confuso de sentimentos, uma profusão de afetos inúteis e raivas inócuas que, de tão fortes e intensos, formam uma absoluta e medíocre pasmaceira. Estou livre e perdido ao mesmo tempo; sem dor nem vontade.

30 de out. de 2006

Tantos planos

Nada do que foi será,
de novo, do jeito que já foi um dia.
Tudo passa,
tudo sempre passará.
Eu tinha tantos planos na minha mente... Planos de como provocar teu sorriso, de te fazer feliz. Sonhava acordado pela manhã, depois do sonho adormecido, pensando no teu rosto, lembrando da tua voz. Era um sonho bom, que vinha naturalmente e eu apenas lhe dava espaço e tempo. Talvez fosse uma boa maneira de despertar.
Mas logo vinha a condenação. Aquele "NÃO" gigantesco, vermelho e estrondoso que pisoteava minha cabeça. "NÃO é possível". "NÃO acontecerá". "NÃO tenho chance". E então, o sonho se tornava castigo; a alegria, fraqueza; e os planos, tempo perdido de vida. Assim tem sido há muito tempo, e agora é um pouco menos do que já fora.
Já não te escondo mais nada; contei-te o que já sabias. Pelas pistas que deixei - algumas intencionais, outras não - e pelas tuas próprias observações, tua desconfiança já era uma certeza. Não preciso mais fingir que não sinto; não precisas mais esconder que sabes. A última lacuna na nossa amizade foi preenchida com transparência sincera e cristalina.
Agora a responsabilidade volta para mim. E é muito grande. A culpa não é tua, talvez minha, mas ainda choro pelo passado que não tivemos, e pelo futuro que não teremos. Choro pelos planos feitos e perdidos, pela energia jogada fora, pela chance que não existiu. Por aquilo que não veio e pelo resto que já passou. Parece que já é tarde, até para chorar.

Hodie amatur a me, cras amicus erit tamen. Plango!

22 de ago. de 2006

Cortina de Fumaça

Essa fumaça que me engasga
e defuma teus pulmões
ressecou teu coração.
Também embaçou teu olhar,
e tornou teu sorriso amarelo.
Essa fumaça em pequenas doses,
repetidas freneticamente,
agora te esconde feito escudo.
Esconde mas não protege.
Proteger de quê?
Teu sorriso limpo,
teu olhar inocente,
tua palavra incauta
Aonde foram parar?
Teus sonhos engendrados,
teus castelos nefelibatas e
teus projetos sonhados
onde foste ocultar?
A máscara arrebatou o ator,
o escudo conquistou o guerreiro,
a fórmula tomou o engenheiro,
mas a lágrima não lavou a dor.
A dor incômoda de ser humano,
de ser frágil e incoerente,
de ser amado e ter medo de errar.
Agora queres fugir. Fugir de quem?
Assopra essa poeira,
limpa essa fuligem,
lava o rosto e levanta os olhos.
Sai detrás dessa cortina que te encobre
e volve ao teu lar amical.
Nós que aqui estamos
por ti esperamos!

31 de jul. de 2006

Despedida

Havia certa feita um rapaz, considerado por muitos como bom amigo e, que reciprocamente, os considerava assim também. Era decerto companhia agradável, pois tinha bom senso de humor, conversas quase sempre inteligentes, ânimo prestimoso e apetite por todos os quitutes e bebidas que as noites pândegas favoreciam. Segundo relatos de pessoas próximas, havia um único senão: um teimoso resíduo de melancolia, uma fenda de sensibilidade que, vez por outra, aflorava e transformava seu semblante, mesmo que contra sua própria vontade, num conflito interno de sintomas externos.

Essa tristeza era resultado de medos e complexos que, desde muito, conviviam dentro de si. Tentara já algumas vezes sufocá-los, enclausurá-los no porão de seu íntimo, esperando que desvanecessem por inanição ou esquecimento. Mas eles não desapareciam; apenas mostravam-se inertes atrás das máscaras que fabricara. Eis que, num momento incerto, esses sentimentos transbordaram de si e, atônito, viu-se encharcado deles, sentindo-se pateticamente fragilizado.

Tantas passaram a ser suas angústias, que resolveu se isolar. Não que não mais desejasse conviver entre seus amigos, mas sabia que não conseguiria ser uma companhia agradável, tão absorto que estava daquela tristeza. A alegria e a felicidade alheia lhe frustravam ainda mais, não por inveja, tampouco por despeito, mas por sentir-se incapaz de ter tal bem para si, incapaz de ser amado, inviável como ser humano.

Precisava de um tempo para si, para organizar seus pensamentos, seus sentimentos. Sabia que a solução de seus problemas sairia forçosamente de sua própria cabeça. E ainda que outrem pudesse lhe socorrer, não saberia como pedir auxílio. Decidiu então comunicar tal afastamento a seus amigos.

Escreveria um texto, que seria lhes seria remetido, ou então publicado. Nesse texto, redigido em terceira pessoa para parecer impessoal e, talvez, ficcionista, falaria dos sentimentos de um rapaz, atormentado por medos e complexos que lhe consomem a razão, e do intuito daquele em se afastar, por considerar-se incapaz de desfrutar da boa companhia dos amigos. Não havia determinado, entretanto, se esperaria por comentários ao seu texto, posto que vários outros textos havia feito sem terem recebido nem elogios, nem críticas; nem mesmo sabia se realmente haviam sido lidos. Então nutria essa dúvida, talvez semelhante àquela do leitor que, surpreso com a revelação, hesitava em comentar tal desconcerto.

24 de jul. de 2006

Xangri-lá

Devo confessar que, quando conheci Xangri-lá, não lhe dei o devido valor. Achei um lugar bonito, mas comum. Não percebi nenhuma exuberância e tampouco pensei que aquele lugar pudesse me acolher. Penso mesmo que a maioria das pessoas também tem essa reação morna em relação a uma primeira impressão.
Mas Xangri-lá vai se mostrando aos poucos. Talvez a primeira coisa que se perceba é sua constante harmonia; uma alegria simples, porém marcante, emana daquela terra. Característica inconfundível é a mania local por jogos, apostas, disputas. Quem nunca se deixou levar por uma inocente disputa e acabou pagando os tradicionais "cinco pulinhos para um lado, e cinco para o outro"?
Xangri-lá é unica e bela em sua forma, por seus costumes; tem uma preguiça provinciana mas prazeres cosmopolitas. Descortinada sua beleza imaterial, percebe-se que sua geografia também tem um raro esplendor. O sol brilha sempre, sem ofuscar, e aquece quem lá esteja. As outras formas, por vezes incomuns, formam um conjunto muito harmonioso.
Então, num segundo momento, fiquei completamente apaixonado por Xangri-lá. Achei que aquele lugar fosse minha vida; mais do que isso, queria Xangri-lá apenas para mim, num exagero equivocado de minha parte. Mas aprendi que o que eu desejava era impossível de ter, e que de outra forma, talvez melhor e mais duradoura, estávamos já fortemente ligados.
O povo dali tem uma auto-consciência impressionante, e a conversa com qualquer um de seus habitantes comprova uma profunda sabedoria, como se cada um carregasse em si toda a experiência pessoal possível, e a prudência de toda a humanidade. Os nativos são assim: apesar de poderem, às vezes, parecer desinteressados, aconselham e ouvem como poucos irmãos seriam capazes.
Hoje tenho um belo casarão bem no coração de Xangri-lá, onde busco o abrigo contra as inquietudes da vida. Em Xangri-lá encontro paz, alegria, amigos. Não nasci naquelas terras, mas é lá que fica minha casa. Em Xangri-lá, sinto o conforto e a segurança de um gato que adormece enrodilhado no travesseiro de seu querido dono.

22 de jul. de 2006

Cansaço

Quando meu corpo está cansado, procuro repouso para recuperar as forças. Normalmente uma boa noite de sono é suficientemente revigorante. Mas tenho sentido um outro tipo de cansaço, um que as noites de sono não resolvem. Talvez eu esteja com a alma cansada, e o sono torna-se uma fuga. Mas é uma fuga em vão, porque a cada manhã está tudo ali, de novo, para me cansar novamente.
Assim, me cansa uma família desestruturada, de pessoas teimosas, possessivas, chantagistas e que convivem numa situação instável e insustentável já há muitos anos. Elas formam uma espantosa e intricada rede de intrigas e interesses, sediada em um terreno que já chego a amaldiçoar, embora tenha crescido entre suas árvores. Para sustentar tal desiquilíbrio usam das forças dos familiares que, por compaixão ou por medo de sentirem remorso, ainda mantêm vínculos. De minha parte, cada vez menos afetivos.
Também me cansa ter um amor que, por impossível, tornou-se doentio e patético. Tentei dele me desvecilhar mas não obtive êxito. Queima ainda dentro de mim como uma úlcera debochada, e me consome com tristeza momentos que deveriam ser apenas de alegria. E também por ele joguei-me novamente à solidão, a desimportância, ao esquecimento. Esqueci-me de mim mesmo, e vejo meu corpo se alastrar a cada dia do meu fatigante sedentarismo; e isso também me cansa.
Estou cansado da inércia que deixei me possuir, da estagnação infrutífera que se tornou minha vida. Cansado de ver o tempo passar mas as coisas não mudarem. Cansado de correr em círculos, ainda que às vezes pareçam elipses. Estou cansado da minha ironia, das minhas palavras virulentas que ferem quem amo. Cansado dos meus queixumes, das minhas ladainhas, que tampouco para a riqueza literária se prestam. Estou cansado de mim.

21 de jul. de 2006

Silogismo

Premissas:
  1. A vontade de se presentear uma pessoa é diretamente proporcional ao amor que se tem por ela.
  2. A grandeza do abraço recebido é inversamente proporcional ao quadrado do valor do presente dado.
Corolário:
  • Quanto mais se gosta de um amigo, mais sem graça é o abraço recebido!
Latine scribere bonum est quod ignoti non intelligunt. Eia!

19 de jul. de 2006

Vulgare Lucae nomen, sed rarae atque summae sunt eius bonitas, sapientia fidesque. Ille inter omnes pulchrius est.

17 de jul. de 2006

Festas

Se as eleições são a festa da democracia, então as guerras são a festa da civilização.

12 de jul. de 2006

O Que Não Deve Ser Feito

Eu estava bem disposto a escrever um texto a respeito do Estatuto da Igualdade Racial, que está para ser votado no Congresso Nacional. Mas achei um excelente artigo de Antônio Carlos Prado, chamado "Qual é a sua cor?", publicado em Revista IstoÉ, que diz muito do que eu penso a respeito.
Mas mesmo assim resumirei em alguns tópicos os principais problemas que vejo nesse projeto:
  1. O Estatuto oficializa uma discriminação que lutamos há décadas e diariamente para não ter. Inclusive está na Constituição Federal que as pessoas não podem ser discriminadas por raça, cor, credo, etc.
  2. O Estatuto cria uma uma separação racial maniqueísta, superficial e irreal ao classificar as pessoas em "negros" e "não-negros". Ignora décadas (ou mais) de miscigenação e de entrosamento cultural que houve no país. Ignora inclusive que os africanos vieram de nações e etnias diferentes, falavam línguas diferentes e tinham religiões diferentes.
  3. Dessa forma, usa a prerrogativa da reparação histórica para impor sistema de cotas, com percentuais completamente arbitrários. Esses percentuais podem rapidamente passar de mínimos exigidos para máximos praticados, causando o efeito contrário ao desejado.
  4. Catapultar pessoas por sua cor, e não pela sua qualificação, é medida paliativa que não resolve os problemas sociais graves existentes, como a deficiência e escassez da educação pública.
  5. O Estatuto ignora que um dos grandes méritos da democracia brasileira foi lançar à pobreza também os brancos, oriundos principalmente do êxodo rural. A que destino estará fadado um branco, pobre, estudante do ensino público?
  6. O Estatuto ignora que a cultura afro-descendente já é amplamente divulgada e a base mais forte da cultura nacional. É impossível pensar o Brasil sem lembrar das várias influências artísticas e culturais de origem africana, que já dominam a preferência dos grandes meios de comunicação.
  7. O Estatuto cria oficialmente três castas no país: a dos que conseguem as coisas por mérito próprio; a dos que conseguem por ser beneficiado pelas cotas; a dos que não conseguem nada.
  8. Aliás, como pode se chamar de "Estatudo da Igualdade", se prevê justamente o oposto, que é discriminação e favorecimento?
  9. Enfim, está na hora dos homens públicos pensarem com responsabilidade nas questões sociais, como planejamento familiar e controle de natalidade, amplo acesso à educação pública, gratuita e de qualidade, saneamento e urbanização das favelas. O resto é demagogia pura e simples.

11 de jul. de 2006

Aldeia Global

Certa vez li num livro de História que a cultura egípcia sobrevivera a quase todas invasões, menos à cristianização. Os cristãos acabaram com todo o esplendor daquela ancestral cultura camito-semítica, preservando apenas a língua, então registrada com uma variante do alfabeto grego, ao que se costumou denominar copta. Depois veio a invasão árabe e o Islã, e por ironia do destino, foram os cristãos que preservaram a antiga língua egípcia na sua liturgia e em traduções da Bíblia. Foi graças ao conhecimento de copta que Champollion pôde decifrar a escrita hieroglífica da pedra de Rosetta.
Enfim, o Egito virou uma república árabe, na língua, na escrita e na religião. Os árabes, outro povo semita, espalharam sua cultura mundo afora, e ela foi sobretudo absorvida na África Setentrional. Apesar da invasão árabe em vastas áreas da europa, a sua língua não vingou, exceção feita à Malta. Lá se fala o maltês, uma derivação do árabe, mas escrito com alfabeto latino, talvez porque a população seja majoritariamente católica.
Já na Ásia, terra de povos muito antigos e culturas muito bem arraigadas, a religião e a escrita venceram, mas não a língua. É o caso do Irã, país onde se fala persa, escrito agora com as letras escorridas importadas do árabe. Os persas, povo indo-europeu muito antigo, rezam agora voltados para Meca. O persa, por sinal, é uma língua próxima do urdu, também escrito com alfabeto árabe, língua oficial do Paquistão, que como sabemos, também é um país muçulmano. O interessante é que o urdu é praticamente a mesma língua que o hindi, língua oficial da Índia. Motivos religosos fizeram o primeiro ser influenciado pelo árabe e o persa, e o segundo pelo sânscrito, língua clássica e sagrada do bramanismo, principal religião dos indianos. Por sinal, a maioria das línguas faladas na Índia usam a escrita chamada devanagári, inclusive o próprio hindi.
Os turcos, por sua vez, são originários de tribos altaicas, parentes dos mongóis. Convertidos ao islamismo, já escreveram usando o alfabeto árabe, mas hoje o fazem com o romano. Assim como a maioria das repúblicas turcomanas da Ásia Central, embora algumas ainda usem o cirílico, resquício da época sob influência russa. Mesma influência que ainda justifica a escrita cirílica usada para o mongol.
A Rússia, sede de um dos patricarcados ortodoxos, é um país de maioria eslava. Os eslavos também são outro grupo indo-europeu. De uma forma geral, usam o cirílico quando são ortodoxos, e o romano quando são católicos. Assim, na Sérvia a língua que é escrita ao jeito de Moscou, na Croácia é escrita à moda de Roma. Aliás, as ex-repúblicas da Iugoslávia formam uma sopa étnico-religiosa muito peculiar.
Alheios a toda essa suruba cultural que virou o Velho Mundo, os nossos índios foram catequizados e viram suas culturas suplantadas pelo português crioulo do Brasil. Desprovidos de sua identidade, já foram vítimas de tentativas de escravização e de extinção. Agora vivem sob a política oficial de preservação, embora seja discutível o que se deseja preservar, pois são dependentes de uma sociedade que os coloca à sua margem. Hoje estão aí, vendendo cestinhos nas feiras, ou morrendo de tédio e cirrose alcoólica.

7 de jul. de 2006

Sufixos

Acho que um corredor de ônibus deveria ser um corredouro, a exemplo de bebedouro.
E acho que algo duradouro deveria ser durador, a exemplo de desolador.
Assim, seria mais lógico. E eu não me irritaria com essas coisas!

29 de jun. de 2006

Página em construção

Acho muito engraçado quando entramos em alguma página da Internet em busca de alguma informação e encontramos apenas um “Página em Construção”. Ela está lá, tem nome, ocupa espaço, mas ao mesmo tempo é vazia, não tem informação. Significa apenas que não é, mas que pretende ser. Às vezes, encontrar uma página dessas pode ser frustrante: ela pode ter sido bem indicada, ter tido uma boa referência, mas por algum motivo está lá, parada, estática. Sem graça. E em algumas, a locução “em construção” é meramente um signo de esquecimento ou de abandono; não serão concluídas nunca; muitas nem sequer foram começadas...

Bom, falar de páginas da Internet é fácil, ainda mais quando se é um informata, meu caso; difícil é falar de mim mesmo. Porque, afinal, que credenciais eu tenho para falar sobre quem sou eu? Como se eu pudesse ter o dom da imparcialidade ao me descrever! Muito mais apropriado é descrever meus hábitos, citar do que gosto, discorrer sobre o que penso. Ou talvez já esteja, sem perceber, descrevendo uma característica minha.

O que sei, sobre mim, é que tenho aprendido muito. Não por estar numa nova faculdade, mas por estar vivendo de uma maneira mais lúcida. Isso não me impede de, vez por outra, cometer erros, imprudências e radicalismos, mas, na média, evita tais situações ou atenua seus efeitos. Mas que lucidez é essa?

Tive uma infância um tanto solitária, sendo filho caçula e temporão de uma família estabelecida mas, ao mesmo tempo, ausente. Por alguns motivos, fui uma criança muito insegura; achava-me – e realmente era – mais imaturo que meus colegas. Posso dizer que sentia mesmo vergonha da minha simples existência. Desejava muito fugir, desaparecer, começar tudo de novo. Foram anos bem complicados, aqueles.

Com a passagem para o segundo grau, mudei de escola. O ambiente novo era mais cosmopolita, pois possuía colegas de vários lugares e classes sociais distintas; os professores eram competentes e, na mesma medida, exigentes. De alguma forma vi uma possibilidade de construir uma nova imagem minha externa, mais forte. E isso foi fácil. Ganhei respeito, tornei-me uma liderança. Entretanto, alguma coisa, possivelmente interna, continuava errada. Seguidas vezes senti-me vazio, triste, só. Pior do que isso, dispensável. Como se eu tivesse uma carência infinita que jamais poderia ser sanada.

Quando vim finalmente morar em Porto Alegre, para fazer meu primeiro curso de graduação, dei um passo importante ao meu amadurecimento e à minha liberdade, mas trouxe comigo, ainda, essas questões não resolvidas. Tentei, então, encenar auto-suficiência. Isso foi desastroso, porque a confundi com desprezo e mesquinharia e acabei machucando e afastando pessoas de quem gostava muito.

Consegui ter uma reação quase imediata, como um raio que cai e ilumina a densa mata molhada pelo temporal. Percebi que as coisas e as pessoas, na grande maioria das vezes, eram mais simples e sinceras do que eu as imaginava. Percebi que minha desconfiança mostrava mais dos meus medos e da minha insegurança do que qualquer outra coisa. Infelizmente, esse momento iluminado aconteceu tarde demais para que fechasse todas as feridas abertas. Mas descobri a necessidade de ser transparente, de eliminar fingimentos, de parar de jogar. Com os outros, e principalmente, comigo.

Essa transparência me permitiu começar a entender minhas fraquezas, corrigir meus defeitos. Agora, aos trinta e dois anos, sinto-me mais aprendiz do que antes. Tenho aprendido a levar a vida de uma maneira positiva, tenho aprendido a não criar fantasmas na minha mente, aprendido a mudar. Mas é um longo trabalho, contínuo, cujo final eu não sei qual será, como será. Quando me vejo no espelho, posso me alegrar com as qualidades ou me entristecer com os defeitos. Mas nesse caso, não me desespero, porque vejo ali, no meio entre o coração e o cérebro, pendurada no pescoço, uma plaquinha dizendo “em construção”.

21 de jun. de 2006

Confissão

Quando eu era criança, fui uma vez a um restaurante muito chique com meus tios. Pedimos um filé à parmegiana. Fiquei impressionado com tanta carne, mas decepcionado com o recheio: dentro havia algo amarelo e derretido, que pensei obviamente tratar-se da gordura da carne. Achei nojento servirem uma carne assim, ainda mais com a gordura camuflada como recheio.
Tratei de raspar aquela porcaria fora, e pude me deleitar com aquele suculento e bem temperado pedaço de carne. O restaurante podia ser chique, mas a mim não enganariam! Deixei aquela coisa sebosa no prato, como testemunho da minha indignação.

14 de jun. de 2006

Verbos

Não é que eu não goste do buscar,
do encontrar,
do achar,
do pegar,
ou do largar;
eu só não conheço o Catar!

12 de jun. de 2006

Um Barco Sobre O Oceano

Aquele barco já tinha alguns anos de idade. Seu motor continuava bom, porém o casco inevitavelmente envelhecia, e começavam a surgir marcas de ferrugem aqui e ali.
Apesar disso, o barco prosseguia seu cotidiano, indo e vindo conforme os planos de viagens que lhe estabeleciam. Freqüentemente participava de regatas e, estando entre seus semelhantes, sentia-se bem e confortado. Os encontros festivos mantinham-no motivado; exceto as procissões, das quais não gostava mesmo de participar. Nisso era diferente dos demais, pelo menos da maioria. Tinha plena convicção de não fora construído para fazer procissões!
Com o passar dos anos, o barco voltava cada vez menos ao seu estaleiro. Sentia uma leve melancolia por isso, mas as mudanças vindas com tempo eram imperdoáveis e o estaleiro já não o comportava bem como antes. Mas julgava que isso era superável, pois tinha várias certezas, entre as quais a de que não estava só.
Entretanto, os pensamentos também mudariam com o tempo. Um dia, percebeu-se só, em pleno oceano. Viu que não havia ninguém ao seu lado. E ao mesmo tempo que obedecia ao itinerário de cada viagem, sentia-se à deriva na própria vida. As certezas que tinha esquivaram-se furtivamente, e percebeu então, de súbito, que o oceano não era apenas infinito e vazio ao seu entorno, mas também profundo e frio abaixo de si. Então, começou a imergir.

9 de jun. de 2006

Amicus certus in re incerta cernitur.

Muito de nada

Se uma das conseqüências imediatas do mundo altamente tecnológico atual é a facilidade com que as informações são disponibilizadas e acessadas, outra – e não menos marcante – é a enorme quantidade de informações disponíveis. São elas não apenas sobre as tecnologias propriamente ditas, mas também sobre toda a ebulição cultural e consumista que vivenciamos. Conseguem os jovens acadêmicos lidar com tanta informação? Segundo a pesquisadora e educadora argentina Ana Teberosky, os universitários “lêem textos variados, mas não se aprofundam em nada, em nenhuma leitura. Lêem de modo superficial e fragmentário, como quem assiste à televisão.”
A primeira pergunta que se impõe é se é possível se aprofundar em todas as leituras. Muitas vezes, na formação do jovem estudante, as leituras devem ser ágeis, quase sem compromisso, para que ele consiga se manter informado sobre tudo o que está acontecendo ao seu redor. Além disso, vai ler e estudar com profundidade o que for do seu interesse ou necessidade, pois demandam emprego dos fatores tempo e empenho. Então, por limitação desses fatores, e pela quase infinidade de assuntos disponíveis, é fácil verificar que o resultado é uma leitura leve e descomprometida com a maioria dos temas.
A segunda questão, talvez o anverso da anterior, é se é necessário o aprofundamento. Para usar termos da moda, somos “bombardeados por torrentes de informações”. Vale dizer que nem todas são úteis; e também nem todas são confiáveis. Assim, a indústria de entretenimento produz fatos e notícias sobre esses fatos, numa escala recursiva e exaustiva. Os periódicos – jornais, revistas – avultam com seus colunistas, cronistas e resenhistas, nem todos qualificados como se desejaria, ou que nem sempre discorrem sobre temas importantes como se esperaria. Todos podem escrever sobre tudo, e se um dia foi dito que o papel aceitava qualquer coisa, hoje podemos dizer que tudo já foi aceito e está na Internet. A um estudante universitário, então, cabe a tarefa de ler e selecionar aquilo que acrescenta à sua formação; imergir no que lhe pode ser útil.
Não é tarefa fácil essa busca constante, verdadeira perscrutação inconsciente. Até porque também toma tempo e empenho, como que numa metaintelecção de texto. Talvez felizes tenham sido os cientistas e filólogos renascentistas, que podiam ler, estudar e concentrar em si todo o conhecimento disponível, verdadeiras enciclopédias vivas. Para os estudantes do mundo moderno, seria mesmo interessante que houvesse algo como um controle remoto para usar em textos, dando zoom nos que fossem bons ou interessantes, pulando os que não calham, e desligando o aparelho antes de lerem bobagens.

5 de jun. de 2006

Bichos Estranhos

Já faz tanto tempo que moro aqui no sítio que quase não lembro como era viver na rua. Embora aqui ainda venham carros e aqueles carros ainda maiores, que rosnam muito, é certamente bem mais tranqüilo. O que não vejo muito aqui são cavalos puxando carroças, e sempre pensei que em sítios houvesse tanto cavalos quanto carroças! De qualquer forma, gosto muito daqui: tenho grandes amigos, fiz muitas namoradas – e devo ter uma dúzia de filhotes espalhados por aí, se meu faro não me engana! Além disso, na parte alta do sítio, criam-se gatos que podemos caçar à vontade. É muito divertido!
Aqui no sítio há muitas casas. Muitas, e todas um tanto parecidas. Quase todas têm duas camadas de janelas e, para se chegar nas segundas camadas, há uma infinidade de escadarias e rampas de acesso. Claro, não posso falar em casas sem falar em pessoas. E em muitas pessoas! Aqui chegam e daqui vão muitas pessoas todos os dias, mas por incrível que pareça, acho que morar no sítio não mora nenhuma.
Reparei que as pessoas mudam com o passar do tempo, quero dizer, de cada época de calor para a seguinte, vejo focinhos novos e deixo de ver outros tantos. Uma coisa muito curiosa é que, em alguns dias da época quente, as pessoas com focinhos novos acabam sendo presas, amarradas, mudam até de cor; e as pessoas com focinhos conhecidos ficam ao redor, rosnando, latindo, jogando umas águas bem mal-cheirosas. Uns coitados ficam fedendo mais do que eu depois de pegar chuva! Ainda bem que isso não ocorre durante todo o tempo, porque alguns focinhos-novos parecem não gostar disso.
Pessoas são bichos estranhos mesmo. Às vezes parecem adorar nossa companhia, fazem cafuné na minha barriga, tentam latir comigo, mas eu não entendo o que tentam dizer. Outras vezes, nos enxotam, nos xingam, nos chutam. E isso acontece muito quando nos aproximamos das casas que cheiram à comida, onde realmente acho que fazem comida. Pelo menos, de vez em quando ganho um restinho bem gostoso.
Uma coisa engraçada nas pessoas é que machos e fêmeas são muito parecidos. Já tentei distingui-los pelo tamanho dos pêlos na cabeça, mas não dá certo, pois ambos podem ter pêlos longos ou curtos. Machos podem ter ou não penugem perto do focinho, mas nunca vi uma fêmea que a tivesse. Ah, acho que fêmeas tem latido mais esganiçado que os machos, mas nem sempre.
Outra esquisitice das pessoas é que elas estão sempre entrando nas casas e depois saindo delas. De tempo em tempo, matilhas inteiras de pessoas adentram, ficam paradas olhando para uma pessoa que fica latindo de pé, depois saem todas de novo. As pessoas não parecem gostar muito de aproveitar o gramado, de correr pelas rampas, de caçar gatos. Ficam lá, dentro das casas. Que tédio deve ser! Mas na época fria, pelo menos, temos algo em comum com as pessoas: elas também gostam de lagartear quando a bola quente aparece.
Mas fico mesmo espantado de como há pessoas que colocam gravetos com brasa na boca. São gravetinhos pequenos, bem claros, mas com uma brasa na ponta! E o que é pior, quando não tem brasa, as próprias pessoas fazem aparecer uma! Será que são loucas? Não sabem que brasa queima e faz mal? Eu nunca chego perto de nada com fogo ou brasa, e acho que aprendi isso com minha mãe. Outro dia, por sinal, vi um grupinho de pessoas numa das casas lá do canto do sítio; todas elas passavam o gravetinho com brasa umas para as outras. Era um gravetinho bem pequeno, diferente dos outros, e tinha um cheiro bem forte. E não é que, apesar disso, as pessoas davam latidos de alegria? Pessoas são mesmo bichos estranhos!

2 de jun. de 2006

A Fúria da Gorda

Ainda me impressiono com a face oculta da amabilidade exagerada de certas pessoas. Pessoas dóceis, simpáticas, sociáveis e pacatas podem esconder sentimentos represados, desejos descabidos, energias desmedidas. Tudo do que precisam é um estopim, um momento oportuno e um motivo convincente para extravasar toda a concupiscência telúrica e mundana que não cabe mais em si. E isso ainda é mais forte, mais grave quando falamos de gordinhas, pois são retentoras potenciais de muito mais emoções veladas do que pessoas comuns.

Pois assim começou tudo. Vi Matheus conversando com a dócil moça, que parecia transitar muito bem entre os diversos grupos formados durante a noite. Fui até eles e integrei-me. Momentos depois estávamos somente ela e eu conversando. Percebi que tratava-se de alguém absorvente e aderente, daquelas que são capazes de sorver toda a atenção de uma pessoa a menos que sejam objetivamente dispensadas. Por esse motivo, evitei, durante toda a noite, dar atenção demasiada ou ainda permanecer só em companhia da avultada rapariga.

Assim, a noite foi passando. Não mais a interpelei diretamente, e notava apenas suas idas e vindas para cá e para lá. Nesses momentos sempre estava acompanhada de uma latinha de cerveja. Agora que os fatos passaram, a lucidez da distância temporal permite pensar e as emoções não mais gritam em meu peito, creio terem sido várias latinhas sucessivas.

Bom, voltei a perceber a Márcia – este era seu nome – quando já transtornada pela bebida e em incipiente ebulição de sentimentos, começara a praguejar contra Vasco por seu suposto descaso com a namorada, mortificada por leve embriaguez. E foi novamente com Vasco que se fez notar, desta vez fitando-o com olhares de fogo faiscante e ira repressora, após o menino-lobo tecer mais uma de suas metáforas escatológicas. Nesse momento meu olhar mirou ao infinito, porque a reprimenda ultrapassava qualquer limite de sanidade.

Depois disso os fatos sucederam-se numa avalanche caótica de terror violento. Fui aquecer-me junto à lareira, e vi que Márcia prontamente seguiu-me. Fingi-me adormecido no sofá, para que não travasse conversa com ela; cambaleou enquanto tentava acrescer folhas de jornal às toras abrasadas. Adormeci. Acordei com uma latinha gelada de cerveja nas minhas costas, arremessada pelo Vasco. Adormeci novamente; acordei agora com várias pessoas no entorno: Christian balbuciando coisas; Vasco não sei onde; Matheus e Márcia no sofá. “Napalm Death!” Matheus inclina-se para a frente, rindo (ele sempre ri, mas somente se inclina quando já está um tanto zonzo). Cerveja escorre sobre seu pescoço e cai no chão. Daniel passa e vê a cena de relance. Saímos para a churrasqueira.

Sucedem um pedido fogoso de desculpa, por parte da agressora, e a percepção, em Daniel, que Matheus vomitara em sua sala. Márcia cerca Matheus por todos os lados, “ela vem daqui, ela vem de lá”. Matheus senta-se e ri; Vasco e eu achamos que ele sucumbira aos seus fartos encantamentos.
Ela desaparece. Matheus suplica nossa ajuda e companhia. Decidimos ir aos potreiros, desbravar as matas e fugir da moça. Matheus, Daniel, Vasco e eu pegamos a fálica lanterna e embrenhamo-nos nos pastos do minifúndio. Ela vem. Ela nos segue. Ela pára na cerca. Paramos também. Uma paz breve toma nossas mentes. Focamo-la com a lanterna; está a rondar a cerca, como um cão de guarda nas portas do inferno. Deita-se. Fica escorada na cerca em posição obscena. Desaparece. Entra na casa. A luz do banheiro é acendida. No interior da casa, ouvem-se gemidos.

Foi com pavor repentino que notamos a luz do banheiro ser apagada. E ela volta. Sai para a área da churrasqueira, vem para a cerca. Pula a cerca. Corremos. Ela solta gritos ininteligíveis. Grunhidos. Uivos. Bate com as mãos em seus peitos saltitantes. Sacode os braços como se fossem asas. Ela percorre os prados em um trajeto desconexo, mas é fácil perceber que vem a nossa direção. Corremos. Corujas piam funestamente, como anunciando o pior. E ela continua vindo; tem o dom de enxergar na escuridão da noite. Continua correndo, grasnando, relinchando, gloterando.
Descemos a colina, em busca de algum lugar que sua visão não alcance. Ela some. Matheus volta um pouco colina acima, próximo da segunda cerca que puláramos. O pobre volta correndo apavorado: “Ela está vindo!”. Vamos mais adiante. Ela aproxima-se e convida com veemência para que adentremos no capão que está próximo. Negamos e decidimos voltar. A incansável Márcia vem atrás: “Voltem, galinhas! Vamos para o mato!” O sol já está nascendo; ela há de perder suas forças.
Quando chegamos à casa, uma sinistra névoa ainda cobria os vales a leste. Pensamos estar seguros na casa. Será que encontraríamos alguém vivo na casa? Ou ela teria matado um por um, em uma fúria punitiva?

Mais uma vez, lá vem ela. Ela vem. Aproxima-se. Decidimos subir no telhado da casa, pois Matheus a escutara confessando seu medo de altura. Ah, sábia decisão! Ali estaríamos ilhados, a espera de um helicóptero que viesse nos resgatar, mas estaríamos totalmente salvos daquele boitatá loiro que nos seguia.

Mas um dos efeitos interessantes do álcool no corpo humano é a perda gradativa das noções, dos limites, dos medos. Isso foi sobremaneira verdadeiro na gorda da cerca: ela subiu com determinação e velocidade no telhado da casa e, sem parecer ter qualquer vestígio de acrofobia. E numa tentativa de dança do acasalamento, correu atrás de Matheus circulando a clarabóia da casa. Resolvemos então, descer. Ela tentou subir na caixa d’água, mas devido às suas generosas formas não logrou alcançar o topo; ficou suspensa, com suas perninhas a balançar pelo vento da manhã. Era uma visão dantesca. Daniel, com razão, temeu por atos insensatos. Digo, por atos muito mais insensatos. Foi então resgatar a moça; levou-a para dentro da casa e a colocou a dormir.

O sol aquecia nossos rostos. Reunimo-nos em frente à bancada da churrasqueira. Sentei na própria bancada e via o sol descortinar o vale antes encoberto pela névoa matinal. Havia um certo clima de tranqüilidade.

Mas eis que ouço o ruído da porta a se abrir; sons próximos da mesa atrás de mim. Temo virar o rosto e olhar; segue-se um silêncio aterrador. Viro o rosto, apenas para confirmar que ela já entrara. Não. Ela está sentada atrás de mim, quase grudada ao meu corpo. O susto faz-me voar. Espatifar-me-ia no chão, não fosse o aparo providencial de Matheus. Começo a rir; nada faz mais sentido. Que o chão me engula e as árvores sequem. É um circo!


“Cuidado com a gorda,
que a gorda te pega.
Te pega daqui,
Te pega de lá.”

1 de jun. de 2006

31 de mai. de 2006

Implicância

João e Antônio moravam juntos havia alguns anos. Dividiam um pequeno apartamento, em um bairro aprazível da cidade. Fazia uns seis meses conseguiram livrar-se da incômoda vizinha do apartamento da frente, uma senhora tão intrometida quanto gritalhona. Desde então, aquele apartamento estava para ser alugado, fato indicado por dois adesivos postos nas suas janelas frontais.
Em um dia desses, mais precisamente numa quarta-feira pela manhã, João volta de suas compras e encontra Antônio recém acordado. Após a saudação matutina, lhe diz:
-Viu que alugaram o apartamento da frente?
Antônio prontamente lhe respondeu:
-Sim, mas já faz um tempão.
João sentiu-se contrariado. Fazia um "tempão" que o apartamento "estava para ser alugado", mas não que "estava alugado"; no sábado anterior ainda tinha visto os dois anúncios de aluguel. Mas resolveu não criar caso por tão pouco, e não disse nada, apenas continuou a desembrulhar suas compras.
Antônio, talvez perturbado com o silêncio inesperado, emendou:
-Já tá a semana toda assim.
-Bom, essa semana... pode ser.
João agora estava convicto da contradição. O outro percebeu que estava errado, e resolveu consertar o dito. Mas ele ainda encontrava falhas, mesmo na desculpa. Afinal, de que semana Antônio estava falando? Fosse da semana contada desde a quarta-feira anterior, estava errado pois no sábado ainda havia o anúncio. Caso fosse da semana cristã, com início no domingo, a chance de Antônio estar blefando era enorme, pois estava mesmo chovendo fortemente desde então, e seria pouco provável que ele inclinaria seu guarda-chuva para avistar se aquele imóvel continuava disponível.
João concluiu que devia ser mais uma implicância fortuita de Antônio. Para João, Antônio tinha essa característica incômoda. Opinava sobre assuntos que desconhecia, e lançava afirmações contundentes sobre fatos ou nomes notoriamente equivocados. Mas João definitivamente não queria entrar em discussão, e deixou por isso mesmo.
Quando estava saindo para trabalhar, encontrou Albertina, a zeladora do prédio, uma mulata vistosa de ancas fartas. Interpelou-a:
-Oi, sabes dizer se alugaram o apartamento da frente?
-Ah sim, foi ontem.
-Obrigado.
João virou-se e desceu as escadarias do prédio. E abriu um largo sorriso.

30 de mai. de 2006

Conversas Cruzadas

Abaixo transcrevo uma conversa que travei com um colega meu, ao qual chamarei de Buneco.

Nunca forneça sua senha ou o número do cartão de crédito em uma conversa de mensagem instantânea.

Buneco diz:
O chefe está?

Usermaatre diz:
Não, ainda não nos honrou com sua presença.

Buneco diz:
A que horas ele tem costumado chegar?

Usermaatre diz:
Não sei, ele não sói chegar em um horário fixo

Buneco diz:
ok

Usermaatre diz:
Digamos que ele tem um invervalo

Buneco diz:
OK

Usermaatre diz:
[12:00; 19:00]

Buneco diz:
ah tá bem... é claro...

Usermaatre diz:
Isso considerando um intervalo fechado...

Buneco diz:
Ou será (12:00;19:00) é aberto, semiaberto à esquerda ou semiaberto à direita ??

Usermaatre diz:
Poderia ser também (12:00; 19:00]

Usermaatre diz:
Pois é...

Usermaatre diz:
Talvez fosse prudente escrever "ele chega às X horas, tal que X >= 12:00"

Usermaatre diz:
Mas o Cel. Vespúcio já esteve aqui à sua procura

Buneco diz:
Talvez melhor ainda : x, tal que x € R e x>= 12:00

Usermaatre diz:
Ah, isso fica subentendido na medida em que foi escrito "X horas". Ora, X então é um hora e pode ser representado por um número real, ainda que formatado em horas:minutos

Buneco diz:
Não, mas FORMALMENTE falando, não tem esta de subentender...

Usermaatre diz:
Ora, é uma dedução lógica, puro modus ponens!

Buneco diz:
Não tão lógica assim. Afinal, podemos dizer x, tal que x € Q ao invés de R

Usermaatre diz:
Nah, essa é uma limitação desnecessária. O tempo pode ser irracional.

Buneco diz:
O tempo sim, mas as horas e os minutos (ou horas fracionárias), não .

Usermaatre diz:
Além do mais, o símbolo de euro não é reconhecido como operador matemático entre objeto e conjunto; logo, a tua formalização acima não é uma wff (well formed formula)

Buneco diz:
Sim, mas está subentendido que tu irias entender o que eu quero dizer...

Usermaatre diz:
Nah, não tem essa de subentender.

Buneco diz:
Como não ?????

Usermaatre diz:
Ah, então uma hora pode, e outra não pode? Isso é paradoxal, meu abádico amigo.

Buneco diz:
Sim, mas se crermos em DEUS então poderemos conviver com os paradoxos

Usermaatre diz:
É, esse é mais um mistério da fé.

Buneco diz:
Pois é... agora tu falou tudo. Viste só como tem vantagem em crer ??

Usermaatre diz:
Pois é. Mas tirar vantagem é pecado. Logo, para não pecar, não creio.

Buneco diz:
Sim, mas aí temos outro paradoxo: aqueles que não creem queimarão no fogo do inferno. Ser descrente é pecado...

Usermaatre diz:
Nah. Se não creio, não tem céu nem inferno. Então posso pecar à vontade!

Buneco diz:
Aha, falácia !!! O fato de não crer não quer dizer que não exista !

Usermaatre diz:
O que importa é aquilo que sinto no meu coração, minha consciência.

Buneco diz:
Ah, mas eu não vejo o teu coração, então ele não existe.

Usermaatre diz:
Claro que existe! Eu estou vivo, então é facilmente dedutível!

Buneco diz:
Sim, mas tu podes ser uma máquina, um E.T. ou pior...

Usermaatre diz:
Não... sou uma criatura de Deus, não mais que as árvores, nem menos que as estrelas.

Buneco diz:
Bah meu, gostei dessa...

Usermaatre diz:
Boa, né?

Buneco diz:
Bah cara adorei, e isso prova a existência de Deus

Despedida

Essa chuva insistente que cai lá fora
Quer afogar minha esperança
ou lavar a tristeza embora?
Pois os dias já me são frios e curtos
mas longos em solidão.
As tardes não têm mais graça,
o café não tem mais sabor,
as vozes são todas iguais.
Meu amigo foi-se embora;
mais um que leva consigo
a lágrima de quem fica e chora.

29 de mai. de 2006

Utilidade Pública

A Globo prestou um dos melhores serviços de utilidade pública com a série "Operação Bola de Cristal", exibida no Fantástico. Conseguiu explicitar como operam esses videntes e paranormais que infestam o mundo afora.
Agora, poderia fazer uma nova série, talvez chamada "Operação Bíblia Sagrada", para acabar com outra enganação, muito maior...

28 de mai. de 2006

Mal-entendido

Uma das piores coisas que pode acontecer na realização dos processos de comunicação é o mal-entendido. Ele ocorre quando um dos interlocutores interpreta erroneamente o que o outro quis dizer, e por vezes, ocorre recíproca e simultaneamente.
Auxiliado pela Lei de Murphy, o mal-entendido normalmente acontece quando não deve acontecer, causando grandes embaraços e prejuízos. Dificilmente acontece um mal-entendido sobre uma bobagem. Mas sobre coisas importantes, daí sim, tudo parece conspirar para que algo saia errado, para que alguém não se faça entender.
O que mais assusta no mal-entendido é que ele pode quebrar paradigmas, invalidar regras, abalar certezas. Ele é subversivo e cruel. Semeia a discórdia entre nós. Devemos eliminá-lo por completo das nossas vidas. Abaixo o mal-entendido!

26 de mai. de 2006

Anagramas

Um anagrama é uma palavra ou frase formada pela transposição das letras de outra palavra ou frase. É um caso específico de criptograma, muito semelhante ao produzido por cifra de transposição, embora normalmente não obedeça a um algoritmo de transformação, o que pode exigir muita disposição e imaginação do criptoanalista.
Um exemplo de anagrama: a partir de "sapo" temos "sopa" e de "tapa" temos "pata". Anagramas podem manter ou não a categoria gramatical do texto original, e podem ser feitos em língua diversa da língua do texto original. Isso obviamente exigia muita imaginação e conhecimento, tanto do criptógrafo quanto dos possíveis decifradores.
Abaixo estão dois bons exemplos: peguei nomes de dois amigos meus e obtive frases em inglês:
A bastard lushes me.
Enable dick!
Mundus vult decipi, ergo decipiatur.
Nihil amicitiae odiosius acumine nimio.

Troca de equipamentos

Faz tempo que não vejo uma emissora de televisão anunciar "Interrompemos brevemente nossas transmissões para troca de equipamentos". Pois eu queria ter essa capacidade, de sair do ar para fazer minha própria manutenção. Não que eu quisesse que as pessoas deixassem de me assistir, nem que trocassem de canal. Apenas um tempo para eu fazer os ajustes necessários. Talvez até mudar a programação, quem sabe. Mas eu não tenho essa habilidade, então fico a exibir as mesmas imagens embaçadas, programas desgastados, sem o brilho que a audiência merece e sem a nitidez que gostaria de passar. Além disso, acho que nem sei fazer a manutenção. Mas enfim, agradecemos pela audiência.

24 de mai. de 2006

Vazio

É estranha a sensação que substitui um amor sufocado e morto. É algo como visitar uma casa antiga, onde moramos durante muito tempo e fomos felizes; mas a casa, abandonada e envelhecida, mostra quase nada do que um dia já foi. A nostalgia, as lembranças e a comoção ficam mesmo por conta do visitante.
Mais intrigante ainda é quando o amor em tela foi natimorto. Nasceu forte, indomável, capaz de qualquer coisa. Menos de ser realizado, de existir de fato. Nasceu destinado a morrer, e assim, existiu de fato em apenas uma mente, machucou apenas um coração, apertou apenas um peito. De fato, como nunca fora concretizado, nem sequer nasceu. Foi apenas uma paixão, uma sucessão de pensamentos dirigidos, a energia canalizada, o choro derramado.
Agora fica essa sensação incômoda, de algo que fez bem, mas que não existiu; que teria sido bom, mas que era impossível. É um vazio triste, porque ninguém mais mora na antiga casa que existe somente na minha lembrança.

23 de mai. de 2006

O Absorvente

Já faz algum tempo que percebi que possuo características que não são minhas. Quero dizer, são minhas por apropriação, mas não por originalidade. Parece confuso? O fato é que assimilo algumas características de amigos meus. Às vezes são cacoetes, às vezes expressões, maneiras...
Foi no ambiente do segundo grau que percebi isso. O jeito de brincar (e de provocar) do Fernando, e acho que até o jeito de rir dele tomaram conta de mim. Isso fez o professor Breno, num acesso de fúria contra a turma, me chamar de deslumbrado, enquanto crucificava o Fernando para os demais. Claro, devo lembrar que o ambiente da turma também era um solo fértil para cacoetes, manias e todo tipo de proliferação: o nosso professor de SOE acusou-nos de usar linguagem do século XIV; não por menos criamos um jornal chamado “A Centúria”, cuja primeira edição foi publicada em latim vulgar macarrônico ressuscitado.
Dessa época também lembro que, algumas vezes, me via pensando como se fosse o André, como se realmente isso fosse possível. Acho que inconscientemente tentava imitá-lo. Mérito todo dele, pessoa incrível que é. Por sinal, que saudade, cara!
Depois foi da alegria e da espontaneidade do Seiji que peguei muita coisa. O jeito de expressar “estou pensando” com os olhos e a testa, acho que um pouco do modo de falar também - embora definitivamente eu não tenha ficado com sotaque japonês - , foram contribuições deste pequeno grande amigo.
Na seqüência, outra grande influência foi o Flávio. Ele com seu vocabulário pitoresco, empolado, típico da aristocracia capilense, foi fonte de muitas transformações no meu jeito de ser. Acho que daí nasceu a minha face erudita; se eu já tinha algum estudo, foi com ele que ganhei pompa e circunstância. E também a mania de consumir cerveja em grandes quantidades.
Durante o período de faculdade, minha grande influência, e aqui até mesmo conscientemente, foi o Weber. Eu acho que passei a falar como ele, me mexer como ele, usar o recurso das frases-ninjas dele. Acho que quando dava aula, criava piadas como as que ele faria no meu lugar. Quando argumentava com alguém, usava o tom professoral típico do Weber. Claro, eu era um aprendiz de Weber, mas com todas as heranças vindas anteriormente. Mas não posso me esquecer aqui de mencionar o Henrique! Meu querido amigo, meu irmão! Hoje quando faço “txipix”, menos que já fiz outrora, não o faço sem lembrar este amigo que tanta coisa me ensinou. Nesse tempo, as forças resultantes que atuavam em mim eram muito semelhantes àquelas que atuavam no Tales, de tal forma que muitas pessoas diziam que falávamos exatamente da mesma maneira. Hum, agora pensando, acho que ele que me imitava!
Durante algum tempo pensei que essa minha tendência fosse falta de personalidade. Afinal de contas, que motivo me leva a imitar algumas coisas de outras pessoas, ainda que o faça sem intenção consciente? Só porque são pessoas próximas? É alguma tentativa de ser aceito? Já tentei inclusive me policiar mas, de um jeito ou de outro, acabo incorrendo em algum deslize.
Achei que minha última influência seria o Matheus. Já me vi dando muita risada parecida com a dele, e muito da ironia e das alfinetadas que uso atualmente peguei dele. É uma enorme e feliz influência, proporcional ao tamanho da nossa amizade. Mas não foi a última. Peguei do Daniel a mania de fazer cenas com dramaticidade, da Carla a tendência de maliciar tudo que é dito. E se não bastasse, agora toda a ênfase argumentativa, indicador acusativo, rajada coativa e outras características do Bruno e, acho também, do Adriano. Mas também, é impossível não cair na tentação de imitar tão adoráveis pessoas.
Hoje convivo bem com esses pequenos furtos que cometo, essas pequenas piratarias de modos. Acho que pego boas coisas de cada pessoa, e no geral, se isso não me torna uma pessoa melhor, certamente me deixa mais agradável. É como se eu prestasse uma homenagem viva a estas pessoas. E elas merecem!

22 de mai. de 2006

Bestiário

Bestas ferozes
de índole voraz
de atos atrozes
tantas feras mutiladas
Não são os leões do Coliseu
São as palavras faladas.

20 de mai. de 2006

Má Chuvinha

No bar, restávamos apenas nós quatro: Marla, Nataniel, Nuno e eu. Uma cortina de fumaça produzida pelos que ali passaram permeava o ambiente, cedendo lugar vagarosamente ao ar fresco e limpo que vinha da rua. Era o anúncio do fim da festa. Lá fora, uma chuva fina caía insistente havia horas.
Nataniel foi buscar apoio para suas elucubrações junto ao balcão. Tecia hipóteses fantásticas e raciocínios mirabolantes para o advento de um admirável mundo novo. Nuno, impoluto, esboçava uma tentativa de apoio àquelas idéias, ainda que lhe fosse impossível a sua compreensão, pois eram mesmo incompreensíveis. Nataniel havia construído castelos magníficos, mas erigidos sobre nuvens, como aquelas que precipitavam-se lá fora.
Marla, levemente inebriada pela doce champanha que tomara durante a noite, acompanhava com incredulidade aquela cena, talvez porque fosse mais uma encenação. Ou talvez porque a contagem das notas multicoloridas de dinheiro a entretivesse no fechamento do caixa daquela noite festiva.
Numa recaída sobre a esteira de seu triste vício, Nataniel novamente fez uma aposta; o prêmio seriam duas garrafas de boa cerveja. Mas, sabedor de sua inevitável, vindoura e costumeira derrota, tentou desviar o foco de nossas atenções, e acabou por prometer uma garrafa de um respeitável – porém oneroso – uísque aos partícipes. Todos riram.
Todos, menos Nataniel. Num rompante, saiu indômito rua afora, decidido a nunca mais voltar. Escuta-se um estrondo: vou correndo pela rua em busca de meu tão querido amigo. Vejo-o deitado na sarjeta do outro lado da rua, molhado, com a mão esquerda ocultando um ferimento em sua cabeça. De seu lado, magníficos blocos de pedra ricamente entalhados. Sim, um de seus castelos havia despencado das nuvens, e o atingira em cheio na sua cabeça dura!

18 de mai. de 2006

É um circo!



Tenho um amigo chamado Lourenço, que atualmente mora em Barcelona. Ele costuma concluir a narrativa de situações bizarras ou irônicas com a frase “É um circo!”. Normalmente a conclusão é acertada e define bem o assunto que foi abordado, seguida pela risada dos demais presentes e goles adicionais de cerveja. A questão filosófica que cabe, mas que parece não ter resposta, é quem está na platéia e quem está no picadeiro: eu tenho para mim que, na maioria das vezes, trata-se desses circos modernosos, em que é tudo uma coisa só e os pagantes acabam por levar torta na cara.
Sob a lona que cobre o território nacional, eu poderia escrever sobre vários assuntos que parecem se enquadrar . Mas habituados que estamos com os escândalos envolvendo Congresso e Executivo, até mesmo em trabalhos conjuntos (sic), ou com as CPIs que nunca resultam em coisa alguma – sim, o “P” é mesmo de pizza; resta descobrir o significado das outras letras –, tais temas já se tornaram enfadonhos e nem mesmo a imprensa os tem tratado em seu noticiário.
Eis que num fim-de-semana, o crime organizado paulista resolve mostrar seu poder, fazendo várias rebeliões simultâneas em presídios, atacando com truculência postos e delegacias de polícia, incendiando ônibus, assassinando policiais. Um episódio muito triste, que vitimou mais de cem pessoas em mais de duzentos ataques e manchou com sangue o dia das mães. O principal alvo foi a capital do estado, que parece ter finalmente perdido a inocência, aquela mesma que o Rio de Janeiro já perdera há algum tempo. Ficaram evidentes o despreparo do poder público, a vulnerabilidade da população e a dúvida de quando isso vai se repetir.
Mas a bizarrice nacional entrou logo em cena, dando toques de humor negro ao cenário deplorável. Primeiro foi o governador do estado em questão, afirmando que estava tudo sob controle. Sob controle? Descontadas as mortes, o medo geral e a desmoralização sofrida, só em prejuízos nas penitenciárias destruídas a quantia chega a mais de dois milhões e meio de reais. Interessante o controle esse que o governador diz ter.
Depois, foi o ministro das comunicações dizendo que é responsabilidade das operadoras de telefonia móvel controlar o ingresso dos aparelhos em áreas proibidas (leia-se penitenciárias). Até é possível imaginar que elas devam evitar transmitir ou bloquear o sinal em tais áreas, mas vamos combinar que, se tais aparelhos entram num presídio, a culpa não é exatamente das operadoras. Em qualquer agência bancária o cidadão precisa passar por uma porta detectora de metais e nem consegue entrar se tiver um molho de chaves ou marca-passo.
Mas a melhor frase foi outra, também do governador. Ele disse que achava muito justo os presos terem pedido televisores para assistirem à Copa do Mundo de futebol, pois eram seres humanos e também tinham direito ao entretenimento. Mas que pitoresco! Depois de comandarem um verdadeiro caos social, além de estarem presos provavelmente porque fizeram mais do que roubar a galinha do pátio do vizinho, os pobrezinhos também devem se divertir como qualquer outra pessoa!
Não é difícil imaginar que, entre as próximas reivindicações, eles peçam televisores para ver o Big Brother, ou mesmo orelhões para poder escolher o participante eliminado da semana. Seria justo! E no carnaval? Os pobrezinhos estão lá, presos, isolados, nem podem sair para pularem um sambinha ou desopilarem um pouquinho. Acho mesmo que o governador possa estar certo, e que ele deve contratar Sandy e Júnior para shows semanais nos presídios.
É, meu amigo Lourenço. Tens toda razão: é um circo. Um circo de horrores.

16 de mai. de 2006

In principio erat verbum...

Pois bem. Cá estamos porque aqui chegamos. Eis que inauguro o meu blogue, protegido pelo anonimato, guardado pelo sigilo e oculto pela cardinalidade. Sei que isso me será cobrado depois, pelo menos por uma pessoa. Mas por enquanto, quero que permaneça assim mesmo.
Esse blogue tem inicialmente três propósitos:
a) expor minhas idéias sobre assuntos que me importam;
b) expor meus textos, embora que para o bem escrever, eu saiba fazê-lo pior do que todos;
c) expor fatos relevantes do meu cotidiano, desde que passem por critérios rigorosos de seleção!
Acho que o ponto fulcral mesmo é treinar a escrita, posto que agora sou um aluno da Letras e, de fato, faz tempo que não exercito a habilidade de escrever.
Bom, eu ainda não editei o meu perfil, portanto meus dados pessoais serão fornecidos em doses homeopáticas. Além do mais, acho que não interessam a ninguém mesmo, assim como o próprio blogue em si. Mas se estiveres lendo isso agora, sê bem-vindo de qualquer forma. Bom proveito!