5 de abr. de 2013

Por que sou ateu

Lembro ter ganhado uma "Bíblia para Crianças" da professora da 2ª série. O livro era bonitinho e, mesmo que eu não procurasse conforto na sua história, ela me parecia ser verdadeira. Bem antiga, mas verdadeira; contava como o mundo surgiu e era o que era. Acho que foi o primeiro contato com Bíblia que tive. O lado paterno da minha família é luterano; o materno, católico. Lá perto da época da catequese e da 1ª comunhão, descobri que havia versões diferentes da Bíblia: a dos católicos e a dos evangélicos. "Como assim, versões diferentes? Não é a história do mundo, a palavra de deus?" eu pensei. Fiquei mais confuso ainda quando descobri que os próprios 10 mandamentos, o cerne condutor da moral cristã, também tinha versões. Como podia aquilo? Dez ordens dadas diretamente por deus... e cada grupo tinha uma versão diferente! Bom, alguém deve ter comentado que 'os homens deturparam' a Bíblia através do tempo. Mas, então, como eu saberia qual a mais fiel? Qual a mais certa? Nessa época, comecei a desacreditar na Bíblia como livro divino, aceitando, no máximo, inspiração divina.

Eu ia à escola, e na escola aprendia coisas várias que faziam muito sentido na vida e no mundo que eu via ao meu redor. Em Estudos Sociais, Matemática, Português. Lá pela 7ª série, quando começaram as aulas de História Geral e de Geografia do Mundo, comecei a montar um quebra-cabeças na minha mente, um que eu nem sabia existir, mas que agora estava lá, posto, com as peças encaixando e fazendo todo o sentido. Descobri que havia outras religiões; que praticamente todo povo inventava sua própria. Descobri que havia uma linha evolutiva entre animismo, politeísmo, diteísmo, monoteísmo... Histórias bíblicas começaram a fazer tanto sentido para mim quanto as da mitologia grega ou egípcia. Eram histórias, fábulas. Perguntava por que um camponês do Nepal seria condenado ao inferno por não ser cristão, se provavelmente ele nunca teria sequer ouvido falar sobre Cristo em toda sua vida. Assim como boa parte daqueles que não são cristãos. Não fazia sentido algum e pensei, como aquela piada que circula pela Internet, se mais de uma religião condena seus não adeptos ao inferno (e pelo menos cristianismo e islamismo fazem isso), e ninguém pertence a mais de uma religião ao mesmo tempo, então toda a humanidade morrerá no fogo do inferno!

Nessa época, deixei de levar o cristianismo a sério. Passou a ser mais uma doutrina, com seus adeptos, não mais importante que maoísmo, mercantilismo, feudalismo, socialismo. Não era algo que embutia uma verdade divina ou qualquer outra prerrogativa inquestionável. Ao contrário, eu enxergava um paradoxo fundamental: os cristãos adotaram o mesmo deus dos judeus, autoproclamados o povo escolhido e que, no entanto, ignoravam totalmente a vinda de Cristo. Como se resolve esse impasse? "O meu deus é o deus de Israel, dos judeus; Cristo é seu filho, mas o povo escolhido por ele não admite isso!" É muita incoerência numa única doutrina! Os árabes foram mais espertos; pegaram o mesmo deus, mas numa versão 2.0: o deus dos muçulmanos não é muito gentil com judeus e cristãos.

Passei um tempo sendo um teísta sem religião, o que me permitia ser um tanto ecumênico: podia conversar com qualquer pessoa a respeito da vida, do universo e de tudo o mais sem que suas confissões atacassem qualquer crença minha, pois eu não tinha mais crenças. Alguém me dizer que acreditava na religião A ou B era tão relevante quanto dizer que era sócio da Ginástica ou do Aliança, ou que votava no PDS ou no PMDB. Questões puramente pessoais, visões de mundo, nada especial. Ainda imaginava, entretanto, existir um criador, um ser superior. Imaginava, mas não sentia.

Com o tempo, e vendo as mazelas do mundo, e a diversidade das coisas e das criaturas no mundo, e como todas os efeitos têm suas causas, ainda que não consigamos explicar todas, comecei a duvidar que existisse esse criador supremo. Como também não o sentia, achei por bem me declarar de acordo com meu pensamento: eu era ateu. Passei a acreditar somente no que eu via, no que era comprovável. Bom, eu não vejo vírus e bactérias, mas sei que existem, porque pessoas mais estudadas e com os instrumentos adequados conseguem ver e mostrar que existem. Conseguem fazer testes. Repetir experimentos. Nada disso a religião conseguia fazer comigo, nada que não me exigisse "transcender" a razão.

Naquele momento me senti um iluminado. Imaginei ser imune a enganações. Senti como se eu e os ateus em geral tivéssemos uma visão mais clara, mais inteligente, do mundo. Passei a dividir a humanidade em duas classes: pessoas inteligentes, como eu e os demais ateus, e pessoas burras, subjugadas por baboseiras de alguma religião das várias que existem. Eu classificava todo mundo dessa maneira e admito que tinha internamente um certo deboche, preconceito, contra quem professasse alguma fé. Mesmo pessoas que eu amava e admirava eram jogadas na vala mental dos "burros". Confesso que comecei a ficar um tanto pedante e intolerante nessa época. Até que senti na pele o preconceito por ser ateu. Uma colega do trabalho certa vez me disse: "Puxa, mas deve ser tão triste não acreditar em nada!" Ao que respondi que acreditava nas pessoas, nas relações. Ela completou dizendo: "Nunca pensei que um ateu pudesse ser legal." Naquele momento me dei conta de que a classificação que eu fazia era preconceituosa, burra, inútil e injusta. Talvez haja algum gene que favoreça algumas pessoas a ter fé. Não sei. Mas isso não desmerece quem são. Não desmerece, nem abona. As pessoas são o que são, o que fazem. Se querem acreditar em gnomos ou qualquer outra coisa, que o façam. Eu não tenho nada a ver com isso.

Então esse sou eu. Como digo, o verbo "ser" do português é muito forte; ele dá um sentido de permanência, de eternidade, que nada no universo tem. É mais correto dizer "este estou eu". Eu estou ateu. Se, algum dia, alguém conseguir me provar a existência de um deus, então não vejo por que não aceitá-la. Até lá, estarei ateu. Como estou ateu, não quero convencer ninguém sobre isso. Não quero converter pessoas crente em ateias, nem dizer que não terão salvação ou que estão perdendo seu tempo de vida com bobagem. Como se eu não perdesse tempo da minha com outras bobagens. Juro, não quero converter ninguém. Quero seguir minha vida de pacato cidadão, pagando meus impostos, amando meus amigos e me divertindo com eles, fazendo-os felizes e tratando bem e com respeito quem está ao meu redor.

E espero, exijo, ser tratado com respeito também. Não quero pessoas apontando o dedo para mim e dizendo que peco, que blasfemo, que isso e que aquilo. Quem tem envergadura moral para dizer qualquer coisa sobre mim ou sobre qualquer outra pessoa? Não quero ser obrigado a frequentar lugares públicos que tenham símbolos religiosos. Não quero que as leis do meu país sejam orientadas por esta ou aquela religião, porque eu não tenho religião alguma. E muita gente também não tem. Não quero ver menções a religião no dinheiro que uso. Então fico realmente contrariado quando vejos grupos tentando se apoderar do congresso para enfiar goela abaixo (dos outros) as suas convicções religiosas. Será que gostariam de um deputado babalorixá na Comissão de Direitos Humanos? Ou da Bancada Xiita negociando favores com o governo federal? Só um estado laico respeita todos e tem lugar para todos - principalmente para os que tem e se importam com religião. Estados teocráticos perseguem e ofendem quem não reza a mesma cartilha. Respeitar o outro não é apenas deixar de agredi-lo física ou verbalmente. Respeitar é deixar que viva em paz, com seus valores, sem tentar impor os próprios valores e crenças.

Por favor, cristãos, vivam suas vidas e deixem-nos viver as nossas!

8 de dez. de 2010

Por que eu prefiro o Orkut

Prefiro o Orkut - e o "antigo" Orkut - porque ele é uma rede de contatos. Ele é prático e funcional para o que se destina: objetivamente, manter contato com amigos; reencontrar amigos; ver atualizações significativas de amigos, como novas fotos ou vídeos, ou alterações no perfil. Ele tem as ferramentas para agenda de eventos, tem vários níveis de privacidade e era isso.

Já o Facebook é, para mim, uma mistura de Twitter e Orkut e é direcionado para o pior dessa união. Não é uma rede de contatos, mas uma rede de fofocas. "Fulano pensou tal coisa e beltrano curtiu isso." A página principal é configurada e minada por essas futilidades, que são bonitinhas, que são engraçadinhas, ou podem ser irônicas, ou até polêmicas, mas que sempre chamam a atenção e que não agregam coisa alguma para ninguém. O Facebook é direcionado ao microcelebridadetismo - sendo essa uma palavra que acabei de cunhar mas que denota bem certo anseio de paparicação virtual, ou seja, necessidade de chamar a atenção.

Ele desvirtua a conversa ou a simples troca de opiniões e ideias entre amigos porque, por padrão, torna isso público - e é em cima dessa publicidade forçada que reside a sua razão de ser. As pessoas preferem o Facebook porque ele é mais interativo, mesmo que essa interatividade toda seja em cima de uma colossal listagem de futilidades. Não importa que sua interface seja poluída e confusa - ele é mais dinâmico que o Orkut.

Mas se eu não gosto do Facebook, por que tenho conta lá? Bom, porque muitos amigos estão abandonando o Orkut. "Ah, Orkut só se usa no Brasil. Nos EUA, todo mundo usa Facebook!". Como quero manter contato com algumas dessas pessoas, eis minha conta feicibuquiana. Mas não é sem protesto. Quero lembrar que o MSN virou moda e solapou o
ICQ, mesmo sendo muito inferior à época e, ainda hoje, não tendo todas as funcionalidades que o velho programa da florzinha tinha. Ainda tenho minha conta no ICQ, mas que contatos vou encontrar lá?

12 de nov. de 2010

Pedofilia

Singrando em diagonal entre casas brancas
O bispo excitado chegou ao alvo do seu desejo
E comeu o pequeno peão que se lhe insinuava.
Extasiado, olhou para o rei inimigo e balbuciou:
- Xeque-mate!

10 de nov. de 2010

A Saga de Carina

Carina nasceu nos arredores de Moscou logo no início do século XX. Aderiu com furor à revolução russa de 1917 e, nos anos seguintes, engajou-se na implantação dos sovietes locais. Na juventude, não primava pela beleza: era magricela e tinha um nariz proeminente, que intimidava seus interlocutores. Logo percebeu que isso podia ter uma vantagem na política: adorava meter-se em celeumas e, mesmo sem embasamento, ganhava as discussões pelo desconforto que causava a sua aparência. E fazia uso disso com frequência, já que não tinha grande capacidade cognitiva para fazer a leitura e intelecção de textos longos; geralmente se apegava a uma ou outra frase, distorcia e retorcia à sua conveniência, e já saía panfleteando e buscando novas controvérsias.



Em 1918, com a transferência do «Pravda» para Moscou, conseguiu emprego na gráfica daquele jornal. Naquele mesmo ano, encontrou uma nova motivação para sua vida: a reforma ortográfica da língua russa. Comprou a mais recente edição do «Novo Vocabulário Ortográfico da Língua Russa» e do «Grande Dicionário Patriótico Russev da Língua Russa» e começou a devorá-los com sofreguidão doentia. Era quase capaz de saber todas as entradas que os dicionários registravam. Mais do que isso, sabia aquelas que neles não havia e que, portanto, no seu peculiar ponto de vista, eram palavras proibidas, invenções de pequenos burgueses.

Mas Carina tinha um problema: ao mesmo tempo que idolatrava os principais dicionários da língua, ela não sabia ao certo como usá-los. Acontece que, na língua russa, várias palavras femininas são muito parecidas com as masculinas, exceto pela terminação. Por exemplo, "costureira" é o feminino de "costureiro". Esse tipo de regra de formação do feminino é chamada de "formação natural do feminino". Esquisitices da língua russa. Outro problema, que fugia à compreensão limitada da abnegada Carina, é que os dicionários russos (da época) costumavam registrar somente as formas masculinas das palavras com formação natural do feminino. Assim, nos dicionários aparecia «sapateiro», mas não «sapateira». Assim também com "bombeiro", "mineiro", "sineiro", "seringueiro". Esquisitices dos dicionários russos.

Para ela, contudo, isso era motivo suficiente para decretar que uma mulher que confeccionasse ou reparasse sapatos era "um sapateiro" e não "uma sapateira" (tomei a liberdade didática de incluir o artigo indefinido para ressaltar o exemplo, embora sabemos que, em russo, não há artigos).

Dessa forma, ela foi se tornando cada vez mais obtusa e radical na sua compreensão do que era certo ou errado em termos de língua. Feminista convicta, achava que todas as profissões deveriam ter uma forma feminina própria, mesmo para os casos de substantivos que já significavam os dois gêneros. Por exemplo, quando foi eleita presidente do «Komsomol» local, quis ser chamada de "presidenta". E queria que isso fosse registrado nos dicionários, embora ambas as coisas não fossem realmente necessárias - nem o sufixo forçado em "-a", nem o registro específico nos dicionários. Para o bem da humanidade e das árvores, essa vontade de Carina nunca foi realizada.

No período de russificação da União Soviética comandado pelo grande irmão Stalin, Carina foi enviada para trabalhar na Ucrânia, numa agência postal de Kiev. Normalmente fazia trabalho interno mas, por vezes, também entregava cartas. Nessa época inscreveu-se na «Patrulha Ortográfica Pan-Soviética da Língua Russa» e, como incumbência na nova agremiação, sempre que saía às ruas para entregar cartas, também procurava erros de ortografia em placas ou cartazes que atentassem contra o que considerava legítimo e bonito. Fazia isso sempre com muita determinação, ainda que não fosse sua função precípua e usasse o uniforme amarelo da agência postal e o crachá verde que a identificava como funcionária do correio.

Infelizmente, aqueles foram anos difíceis. Junto com a russificação e a coletivização forçada do campo, veio a Grande Fome - a «Holodomor» dos ucranianos. Mais do que um grande colapso do abastecimento de alimentos, foi uma estratégia usada por Stalin para dobrar e vencer a resistência na "Pequena Rússia". Estima-se que até 10 milhões de ucranianos tenham sido vitimados pela fome devastadora.

Um dia, saindo excepcionalmente para entregar cartas, Carina encontrou um cartaz com o dizer: "Katerina Gruberova - torneira mecânica". Prontamente consultou o «Novíssimo Vocabulário Ortográfico da Lìngua Russa» e verificou que, no verbete "torneira", não constava o sentido de "mulher que trabalha com tornearia", mas apenas o de "tubo com chave por onde escoa líquido". Ficou ultrajada, porque era uma profissão em ascensão no âmbito feminino - cada vez mais mulheres operavam tornos - mas não tinha forma adequada ao gênero registrada no seu livro sagrado. Ao mesmo tempo, também ficou exultante, porque poderia denunciar a tal da Katerina por usar uma forma feminina que não existia, não era abonada pelo vocabulário. Pensou que Katerina era muito ignorante, e que devia ter escrito "torneiro mecânico" no seu anúncio, mesmo sendo mulher.

Assim, entusiasmada, saiu correndo para denunciar Katerina ao posto local da «KGB», quando deparou-se com um homem rústico, de barba hirsuta e negra e de olhos amendoados. Ele lhe disse que se chamava Ivan, e que trabalhava no «Pravda» de Kiev; nas horas vagas era cineasta amador, mas nenhuma das ocupações lhe rendia proventos suficientes para comprar comida no mercado negro; estava muito faminto, apesar de sua saliente barriga. Desesperado, fitou-a com certa fúria e disse:

- Eu quero comer a carteira.

Carina ficou de súbito espantada, mas não tinha dúvida sobre o significado do que ouvira. Apiedou-se e, mesmo sem entender como um homem poderia comer um artefato sujo de couro, sacou de seu bolso a carteira para oferecer ao pobre homem. Pensou, na verdade, que ele queria dinheiro para comprar comida. Depois, limpou sua testa dos perdigotos que Ivan lhe arremessara com a manga do seu uniforme amarelo. Ficou parada, risonha, como que contemplando sua boa ação.

Mas todo o entendimento de Carina estava errado. Ivan sacou de sua calça uma lança feita de madeira, listrada em branco e preto como se tivesse sido extraída de uma claquete, e com esse instrumento rudimentar desferiu várias estocadas contra Carina, que caiu aos espasmos sobre a poça de sangue que lhe escorria. Ele, então, prostrou-se junto ao corpo e, com o mesmo instrumento, passou a dilacerar a vítima, para comer pedaços crus de sua carne magra e suculenta. E assim foi que morreu Carina, a patrulheira ortográfica que trabalhava como carteira, embora isso não fosse registrado no dicionário: morreu sem entender por que havia sido devorada.

2 de nov. de 2010

Os acreanos decidiram voltar ao fuso horário antigo. Devem ter lido meu texto sobre o assunto! :-)

Dona Guerda

Há certas coisas que vêm à minha mente de forma persistente. São pensamentos automáticos, involuntários, que povoam a minha cabeça quando não está focada em algum outro assunto. Não que eu pense neles o tempo todo, mas diariamente eles marcam presença. De forma geral, dizem respeito a pessoas; raras vezes a situações ou compromissos. Uma dessas pessoas é a minha mãe, dona Guerda, falecida faz 6 meses. Como hoje é dia de finados, resolvi escrever um pouco sobre ela, como forma de desabafo e, se possível, homenagem.
Devo confessar, em primeiro lugar, que não é fácil escrever sobre ela. Acredito que não tenho a visão imparcial e suficientemente esclarecida para poder fazer isso sem cair em erros de avaliação. Como filho, influenciado diretamente pelo convívio e criação, fica realmente difícil fazer uma descrição completa e justa. Dito isso, sigo adiante.
Uma das primeiras lembranças que tenho dela era da hora do meu banho. Primeiro numa banheirinha plástica cor-de-rosa, que seguido ia para o pátio, no gramado. Depois, numa maior e mais pesada, de metal, que ficava no banheiro mesmo. Lembro que, algumas vezes, não gostava quando ela enxaguava minha cabeça, ou por a água estar fria ou por escorrer xampu nos meus olhos. Lembro também que era ela que cortava meu cabelo, daquele jeito penico. Falando em cabelo, lembro que gostava de dormir mexendo nos cabelos dela, normalmente enrolando-os com meu indicador.
Quando ela me buscava da aula no 25, passávamos na loja de tecidos Sperb, que tinha um bebedouro de água bem gelada, que eu apreciava muito. Às vezes, nessa mesma volta para casa, ela me levava à padaria Brasil, para comer algum doce. Mas uma coisa de eu gostava muito mesmo era quando ela trazia, da banca do Araújo, um minipote de sorvete napolitano. Isso ela fazia quando voltava do trabalho e eu adorava muito. Acho que nesse período magoei-a pela primeira vez, pois devo ter deixado escapar, de alguma forma, que sentia um pouco de vergonha por ela ser mais velha que a média das outras mães e meus colegas acharem que se tratava da minha avó.
Acho que ela era uma mulher de criação bem germânica, no sentido que não sabia muito bem externar carinho e afeto aos filhos - fazia isso de uma forma subentendida, no dia-a-dia. Em compensação, nos rompantes de fúria e insatisfação, ela era bem agressiva, especialmente nas palavras ferinas. Acho que isso marcou muito a mim e aos meus irmãos, embora não fosse essa, certamente, sua intenção. No aspecto afetivo, ela deu carinho como aprendera a dar - com dedicação e abnegação.
A vida não foi muito generosa com ela. O casamento foi problemático, o dinheiro era sempre curto. Mesmo assim, ela não se entregava. Ajudava incansavelmente meu pai nas maluquices dele, consertando persianas, arrumando o carro - um Simca Rallye para lá de obsoleto, guardando quinquilharias. E cuidava, como podia e sabia, dos filhos. Quando ele morreu, achei que ela sucumbiria de tristeza. Mas seguiu forte, ainda que vez por outra se trancasse no banheiro para chorar. Não sei se chorava de saudade dele, ou de mágoa com a vida, ou das duas coisas.
Ela gostava de política, de história, de geografia. Sempre tinha uma opinião fundamentada sobre os assuntos atuais. Mostrava sua indignação com os governantes e seus desmandos e suas trapalhadas. Lembro que ela dizia, sem cerimônia, que fulano era 'lambe-cu do Fedorento", se referindo a algum repórter que elogiava o ex-presidente, que muito sabotou os parcos vencimentos que ela recebia da aposentadoria.
Ela gostava da língua francesa também, e quando soube que eu estava estudando, deve ter ficado bem feliz. Várias vezes nos telefonávamos e ela me perguntava em francês como eu estava. Mas ela, por outro lado, repudiava latim, e debochava com "qui, quae, quod, cuius, cuiis, cuius" quando eu falava nessa língua. Maldito método de aprendizado por tabuada que ela deve ter tido!
Acho que um erro que ela cometeu foi de se valorizar pouco. Era muito desleixada com suas próprias coisas, sua saúde, seu corpo. E não adiantava um filho tentar falar coisas desse tipo para ela; ela é que sabia, ela é que mandava. Aceitar a opinião contrária de um filho não era algo que fizesse com facilidade. Ao mesmo tempo, ela era generosa e desapegada - acho que abriu mão de muitas coisas em favor dos filhos, mas isso eu só percebi muito tardiamente. Por exemplo, acho que o dinheiro da venda do Simca foi, em boa parte, para a festa da minha 1ª comunhão. E quando ela se aventurou numa viagem de ônibus ao Paraguai comigo para eu comprar meu multímetro.
Muitas vezes me culpo por não ter sido mais atencioso, mais presente. Mas o ambiente familiar não ajudava muito e eu acabava fugindo, ou por pura covardia, ou para tentar me manter menos afetado pelas questões insolúveis. Com a morte dela, esse sentimento aparece com força, muitas vezes. Então tenho de me esforçar para lembrar que ela era, também, uma pessoa de difícil convívio, pouco flexível. A senilidade e o provável Alzheimer só acentuaram essas características, embora também tenham trazido uma afetuosidade pouco comum.
Somente no leito de morte eu disse que a amava, mas não sei se escutou. Queria ter alguma fé que me permitisse acreditar que ela ainda existe, em algum lugar, de alguma forma, e que está bem. E que ela soubesse o quanto eu a amo e o quanto ela faz falta. Sinto falta da sua voz suave ao telefone falando em francês; dos bolos que fazia nos finais de semana para minha visita, no período seguinte a minha mudança para Porto Alegre. Sinto saudade do seu colo, das suas opiniões, das suas histórias, que muitas vezes ouvi sem prestar a devida atenção.
Minha mãezinha, dona Guerda. Como ainda dói essa sua ausência. Eu não sei o que é a vida, eu não sei o que é a morte. Mas eu sei o que é amor de filho para uma mãe. E esse, a despeito da minha distância e ausência nesses últimos tempos, esse é grande, é o maior, é o máximo. Então é isso: de tudo sobre minha mãe, eu apenas acho, pois não tenho a capacidade de compreender tudo que se passou com ela. De tudo sobre minha mãe, eu sei que a amava.

31 de out. de 2010

Presiden...ta?

Pois a Dona Dilma venceu a eleição. Desejo, do fundo do meu coração, boa sorte para nossa futura presidente. Sim, presidente, que toma leite quente que dói nos dentes da gente. Ela, mulher, mãe, avó, será a primeira presidente - assim mesmo, com "e" no final - do Brasil. Porque a palavra "presidenta" pode até aparecer num ou noutro dicionário, mas é um aborto, coisa que a Dilma e o Serra prometeram combater. No caso, um aborto linguístico, uma excrescência.
Mas por que toda essa minha fúria contra uma palavrinha tão inofensiva? Porque ela fere, de forma ampla e irrestrita, a lógica, a tradição e a beleza da língua. Explico: o sufixo "-nte" que existe em português, como em presidente, pedinte, palestrante, gerente, vem de uma desinência verbal do latim. Ou seja, essas palavras são originadas, a princípio, de um verbo - em latim, essas formas verbais eram chamadas de particípio presente. Essa forma verbal tem um significado explicitamente ativo, ou seja, aquele que pratica a ação; por exemplo, presidente é "(aquele) que preside".
Acontece que, tanto em latim quanto em português, palavras com essa função e com essa forma são palavras que designam e abarcam completamente os dois sexos - masculino e feminino (em latim, na verdade, serve também para o neutro). Porque são, antes de tudo, formas verbais incorporadas em substantivos. Não por acaso, um susbtantivo desse tipo é chamado "comum de dois (gêneros)". Então, essa moda de efeminar o sufixo, metendo um "a" no final para designar pessoas do sexo feminino que executam a ação, é desnecessária, equivocada, sexista e incoerente. Pois se moda pega, a gerente de um banco será a "gerenta", e uma palestrante será uma "palestranta". Uma mulher grávida seria, então, uma "gestanta". Ridículo, não?
A mesma coisa poderia se pensar com o sufixo "-sta". A jornalista versus o "jornalisto", a dentista versus o "dentisto". É a esse esgoto que esses fanfarrões querem levar nossa língua? No juridiquês, forma pernóstica - e por vezes perniciosa - da língua, os doutos doutores, muitos sem doutoramento, inventaram que palavras com final em "-l" são masculinas, e derivaram daí as oficialas e as bacharelas. Ainda bem que o pincel não é título judiciário; passou incólume!

25 de out. de 2010

O nome das coisas

Várias vezes já fui questionado por que não se fala mais latim. Existem várias explicações boas sobre isso, mas o cerne da questão - e da resposta - reside muito mais na arbitrariedade da nomenclatura do que em história ou linguística.

Ninguém duvida de que os japoneses falam japonês, de que os árabes falam árabe, de que os gregos falam grego e de que os indianos falam hindu. E ainda de que os iranianos falam persa, embora o gentílico não ligue o povo à língua. Bom, todas essas línguas são tão ou mais antigas que o latim, nossa língua-avó, morta e enterrada - que descanse em paz! O que explica, então, a permanência dessas línguas e o desaparecimento do latim?

O latim era a língua do Império Romano e foi espalhado pelas províncias conquistadas. Com a queda de Roma, essas províncias passaram a países e as forças que unificavam a língua com o padrão da antiga capital do império deixaram de existir. É fácil perceber que, numa época de grande analfabetismo, de sociedades rurais e sem telecomunicações, cada país, cada povo, iria moldar o latim que falava de acordo com seu próprio contexto - cultura própria e a adquirida através do intercâmbio com outros povos. Assim, cada país fez o latim evoluir de uma maneira diferente. Quando o conceito de estado nacional se firmou, a língua tornou-se um fator de identidade nacional muito importante. Então, o nome da língua precisava, também, de acompanhar a nação e o nome "latim" passou a pertencer a um passado inglório de povo subjugado que não mais interessava. Dessa forma, no Reino de Portugal surgiu o português; em Castela, o castelhano, e assim por diante.

Isso é bem diferente do que aconteceu com as outras línguas anteriormente citadas. Cada uma dessas línguas era - e ainda é - língua nacional de um povo. Embora o persa falado hoje tenha pouca relação com a língua que Xerxes falava, ou grego de hoje seria ininteligível para Sócrates caso vivesse, essas línguas mantiveram seus nomes porque estão associadas a nações que mantiveram seus estados. Em todos os casos, adjetivos temporais dão a ideia do hiato existente: "grego clássico" versus "grego moderno"; "persa antigo" versus "persa moderno", etc. Mesmo no caso do árabe, que foi espalhado a um grande número de países, o processo de fragmentação e diversificação não ocorreu. O árabe, língua literária madura, acabou sendo adotado como língua nacional em cada estado convertido ao islã. E o fator religioso é um forte motivador da unidade linguística - desconsiderados os inúmeros dialetos existentes.

Então, sob certa perspectiva, é plausível considerar que ainda falamos latim. Um latim modificado, que atravessou vários séculos e revoluções de vários tipos. Mas lembremos que o latim que falamos é tão diferente do falado por Cícero quanto o grego moderno difere daquele que Platão proferia. E se tudo é grego, então tudo é latim! Aliás, ao estudar latim, ficamos impressionados com a quantidade de palavras que chegaram intactas ao nosso vocabulário, ou as que sofreram pouca mutação. Por outro lado, o latim que falamos é diferente do latim falado pelos hermanos, e do falado pelos fratellos.

Uma comparação que gosto de fazer é com o nome das cores: o azul, pouco comum na vida natural, é muito mais conservativo ao nome de suas variantes: azul claro e azul escuro são as básicas, além de azul celeste, azul marinho, etc. Já o vermelho pouco permanece com seu nome: um pouco mais claro fica "rosa"; um pouco mais escuro fica "vinho", "marrom". No fim, tudo é uma questão de darmos nomes às coisas.