Lembro ter ganhado uma "Bíblia para Crianças" da professora da 2ª série. O livro era bonitinho e, mesmo que eu não procurasse conforto na sua história, ela me parecia ser verdadeira. Bem antiga, mas verdadeira; contava como o mundo surgiu e era o que era. Acho que foi o primeiro contato com Bíblia que tive. O lado paterno da minha família é luterano; o materno, católico. Lá perto da época da catequese e da 1ª comunhão, descobri que havia versões diferentes da Bíblia: a dos católicos e a dos evangélicos. "Como assim, versões diferentes? Não é a história do mundo, a palavra de deus?" eu pensei. Fiquei mais confuso ainda quando descobri que os próprios 10 mandamentos, o cerne condutor da moral cristã, também tinha versões. Como podia aquilo? Dez ordens dadas diretamente por deus... e cada grupo tinha uma versão diferente! Bom, alguém deve ter comentado que 'os homens deturparam' a Bíblia através do tempo. Mas, então, como eu saberia qual a mais fiel? Qual a mais certa? Nessa época, comecei a desacreditar na Bíblia como livro divino, aceitando, no máximo, inspiração divina.
Eu ia à escola, e na escola aprendia coisas várias que faziam muito sentido na vida e no mundo que eu via ao meu redor. Em Estudos Sociais, Matemática, Português. Lá pela 7ª série, quando começaram as aulas de História Geral e de Geografia do Mundo, comecei a montar um quebra-cabeças na minha mente, um que eu nem sabia existir, mas que agora estava lá, posto, com as peças encaixando e fazendo todo o sentido. Descobri que havia outras religiões; que praticamente todo povo inventava sua própria. Descobri que havia uma linha evolutiva entre animismo, politeísmo, diteísmo, monoteísmo... Histórias bíblicas começaram a fazer tanto sentido para mim quanto as da mitologia grega ou egípcia. Eram histórias, fábulas. Perguntava por que um camponês do Nepal seria condenado ao inferno por não ser cristão, se provavelmente ele nunca teria sequer ouvido falar sobre Cristo em toda sua vida. Assim como boa parte daqueles que não são cristãos. Não fazia sentido algum e pensei, como aquela piada que circula pela Internet, se mais de uma religião condena seus não adeptos ao inferno (e pelo menos cristianismo e islamismo fazem isso), e ninguém pertence a mais de uma religião ao mesmo tempo, então toda a humanidade morrerá no fogo do inferno!
Nessa época, deixei de levar o cristianismo a sério. Passou a ser mais uma doutrina, com seus adeptos, não mais importante que maoísmo, mercantilismo, feudalismo, socialismo. Não era algo que embutia uma verdade divina ou qualquer outra prerrogativa inquestionável. Ao contrário, eu enxergava um paradoxo fundamental: os cristãos adotaram o mesmo deus dos judeus, autoproclamados o povo escolhido e que, no entanto, ignoravam totalmente a vinda de Cristo. Como se resolve esse impasse? "O meu deus é o deus de Israel, dos judeus; Cristo é seu filho, mas o povo escolhido por ele não admite isso!" É muita incoerência numa única doutrina! Os árabes foram mais espertos; pegaram o mesmo deus, mas numa versão 2.0: o deus dos muçulmanos não é muito gentil com judeus e cristãos.
Passei um tempo sendo um teísta sem religião, o que me permitia ser um tanto ecumênico: podia conversar com qualquer pessoa a respeito da vida, do universo e de tudo o mais sem que suas confissões atacassem qualquer crença minha, pois eu não tinha mais crenças. Alguém me dizer que acreditava na religião A ou B era tão relevante quanto dizer que era sócio da Ginástica ou do Aliança, ou que votava no PDS ou no PMDB. Questões puramente pessoais, visões de mundo, nada especial. Ainda imaginava, entretanto, existir um criador, um ser superior. Imaginava, mas não sentia.
Com o tempo, e vendo as mazelas do mundo, e a diversidade das coisas e das criaturas no mundo, e como todas os efeitos têm suas causas, ainda que não consigamos explicar todas, comecei a duvidar que existisse esse criador supremo. Como também não o sentia, achei por bem me declarar de acordo com meu pensamento: eu era ateu. Passei a acreditar somente no que eu via, no que era comprovável. Bom, eu não vejo vírus e bactérias, mas sei que existem, porque pessoas mais estudadas e com os instrumentos adequados conseguem ver e mostrar que existem. Conseguem fazer testes. Repetir experimentos. Nada disso a religião conseguia fazer comigo, nada que não me exigisse "transcender" a razão.
Então esse sou eu. Como digo, o verbo "ser" do português é muito forte; ele dá um sentido de permanência, de eternidade, que nada no universo tem. É mais correto dizer "este estou eu". Eu estou ateu. Se, algum dia, alguém conseguir me provar a existência de um deus, então não vejo por que não aceitá-la. Até lá, estarei ateu. Como estou ateu, não quero convencer ninguém sobre isso. Não quero converter pessoas crente em ateias, nem dizer que não terão salvação ou que estão perdendo seu tempo de vida com bobagem. Como se eu não perdesse tempo da minha com outras bobagens. Juro, não quero converter ninguém. Quero seguir minha vida de pacato cidadão, pagando meus impostos, amando meus amigos e me divertindo com eles, fazendo-os felizes e tratando bem e com respeito quem está ao meu redor.
E espero, exijo, ser tratado com respeito também. Não quero pessoas apontando o dedo para mim e dizendo que peco, que blasfemo, que isso e que aquilo. Quem tem envergadura moral para dizer qualquer coisa sobre mim ou sobre qualquer outra pessoa? Não quero ser obrigado a frequentar lugares públicos que tenham símbolos religiosos. Não quero que as leis do meu país sejam orientadas por esta ou aquela religião, porque eu não tenho religião alguma. E muita gente também não tem. Não quero ver menções a religião no dinheiro que uso. Então fico realmente contrariado quando vejos grupos tentando se apoderar do congresso para enfiar goela abaixo (dos outros) as suas convicções religiosas. Será que gostariam de um deputado babalorixá na Comissão de Direitos Humanos? Ou da Bancada Xiita negociando favores com o governo federal? Só um estado laico respeita todos e tem lugar para todos - principalmente para os que tem e se importam com religião. Estados teocráticos perseguem e ofendem quem não reza a mesma cartilha. Respeitar o outro não é apenas deixar de agredi-lo física ou verbalmente. Respeitar é deixar que viva em paz, com seus valores, sem tentar impor os próprios valores e crenças.
Por favor, cristãos, vivam suas vidas e deixem-nos viver as nossas!
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