Carina nasceu nos arredores de Moscou logo no início do século XX. Aderiu com furor à revolução russa de 1917 e, nos anos seguintes, engajou-se na implantação dos sovietes locais. Na juventude, não primava pela beleza: era magricela e tinha um nariz proeminente, que intimidava seus interlocutores. Logo percebeu que isso podia ter uma vantagem na política: adorava meter-se em celeumas e, mesmo sem embasamento, ganhava as discussões pelo desconforto que causava a sua aparência. E fazia uso disso com frequência, já que não tinha grande capacidade cognitiva para fazer a leitura e intelecção de textos longos; geralmente se apegava a uma ou outra frase, distorcia e retorcia à sua conveniência, e já saía panfleteando e buscando novas controvérsias.
Em 1918, com a transferência do «Pravda» para Moscou, conseguiu emprego na gráfica daquele jornal. Naquele mesmo ano, encontrou uma nova motivação para sua vida: a reforma ortográfica da língua russa. Comprou a mais recente edição do «Novo Vocabulário Ortográfico da Língua Russa» e do «Grande Dicionário Patriótico Russev da Língua Russa» e começou a devorá-los com sofreguidão doentia. Era quase capaz de saber todas as entradas que os dicionários registravam. Mais do que isso, sabia aquelas que neles não havia e que, portanto, no seu peculiar ponto de vista, eram palavras proibidas, invenções de pequenos burgueses.
Mas Carina tinha um problema: ao mesmo tempo que idolatrava os principais dicionários da língua, ela não sabia ao certo como usá-los. Acontece que, na língua russa, várias palavras femininas são muito parecidas com as masculinas, exceto pela terminação. Por exemplo, "costureira" é o feminino de "costureiro". Esse tipo de regra de formação do feminino é chamada de "formação natural do feminino". Esquisitices da língua russa. Outro problema, que fugia à compreensão limitada da abnegada Carina, é que os dicionários russos (da época) costumavam registrar somente as formas masculinas das palavras com formação natural do feminino. Assim, nos dicionários aparecia «sapateiro», mas não «sapateira». Assim também com "bombeiro", "mineiro", "sineiro", "seringueiro". Esquisitices dos dicionários russos.
Para ela, contudo, isso era motivo suficiente para decretar que uma mulher que confeccionasse ou reparasse sapatos era "um sapateiro" e não "uma sapateira" (tomei a liberdade didática de incluir o artigo indefinido para ressaltar o exemplo, embora sabemos que, em russo, não há artigos).
Dessa forma, ela foi se tornando cada vez mais obtusa e radical na sua compreensão do que era certo ou errado em termos de língua. Feminista convicta, achava que todas as profissões deveriam ter uma forma feminina própria, mesmo para os casos de substantivos que já significavam os dois gêneros. Por exemplo, quando foi eleita presidente do «Komsomol» local, quis ser chamada de "presidenta". E queria que isso fosse registrado nos dicionários, embora ambas as coisas não fossem realmente necessárias - nem o sufixo forçado em "-a", nem o registro específico nos dicionários. Para o bem da humanidade e das árvores, essa vontade de Carina nunca foi realizada.
No período de russificação da União Soviética comandado pelo grande irmão Stalin, Carina foi enviada para trabalhar na Ucrânia, numa agência postal de Kiev. Normalmente fazia trabalho interno mas, por vezes, também entregava cartas. Nessa época inscreveu-se na «Patrulha Ortográfica Pan-Soviética da Língua Russa» e, como incumbência na nova agremiação, sempre que saía às ruas para entregar cartas, também procurava erros de ortografia em placas ou cartazes que atentassem contra o que considerava legítimo e bonito. Fazia isso sempre com muita determinação, ainda que não fosse sua função precípua e usasse o uniforme amarelo da agência postal e o crachá verde que a identificava como funcionária do correio.
Infelizmente, aqueles foram anos difíceis. Junto com a russificação e a coletivização forçada do campo, veio a Grande Fome - a «Holodomor» dos ucranianos. Mais do que um grande colapso do abastecimento de alimentos, foi uma estratégia usada por Stalin para dobrar e vencer a resistência na "Pequena Rússia". Estima-se que até 10 milhões de ucranianos tenham sido vitimados pela fome devastadora.
Um dia, saindo excepcionalmente para entregar cartas, Carina encontrou um cartaz com o dizer: "Katerina Gruberova - torneira mecânica". Prontamente consultou o «Novíssimo Vocabulário Ortográfico da Lìngua Russa» e verificou que, no verbete "torneira", não constava o sentido de "mulher que trabalha com tornearia", mas apenas o de "tubo com chave por onde escoa líquido". Ficou ultrajada, porque era uma profissão em ascensão no âmbito feminino - cada vez mais mulheres operavam tornos - mas não tinha forma adequada ao gênero registrada no seu livro sagrado. Ao mesmo tempo, também ficou exultante, porque poderia denunciar a tal da Katerina por usar uma forma feminina que não existia, não era abonada pelo vocabulário. Pensou que Katerina era muito ignorante, e que devia ter escrito "torneiro mecânico" no seu anúncio, mesmo sendo mulher.
Assim, entusiasmada, saiu correndo para denunciar Katerina ao posto local da «KGB», quando deparou-se com um homem rústico, de barba hirsuta e negra e de olhos amendoados. Ele lhe disse que se chamava Ivan, e que trabalhava no «Pravda» de Kiev; nas horas vagas era cineasta amador, mas nenhuma das ocupações lhe rendia proventos suficientes para comprar comida no mercado negro; estava muito faminto, apesar de sua saliente barriga. Desesperado, fitou-a com certa fúria e disse:
- Eu quero comer a carteira.
Carina ficou de súbito espantada, mas não tinha dúvida sobre o significado do que ouvira. Apiedou-se e, mesmo sem entender como um homem poderia comer um artefato sujo de couro, sacou de seu bolso a carteira para oferecer ao pobre homem. Pensou, na verdade, que ele queria dinheiro para comprar comida. Depois, limpou sua testa dos perdigotos que Ivan lhe arremessara com a manga do seu uniforme amarelo. Ficou parada, risonha, como que contemplando sua boa ação.
Mas todo o entendimento de Carina estava errado. Ivan sacou de sua calça uma lança feita de madeira, listrada em branco e preto como se tivesse sido extraída de uma claquete, e com esse instrumento rudimentar desferiu várias estocadas contra Carina, que caiu aos espasmos sobre a poça de sangue que lhe escorria. Ele, então, prostrou-se junto ao corpo e, com o mesmo instrumento, passou a dilacerar a vítima, para comer pedaços crus de sua carne magra e suculenta. E assim foi que morreu Carina, a patrulheira ortográfica que trabalhava como carteira, embora isso não fosse registrado no dicionário: morreu sem entender por que havia sido devorada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário