2 de nov. de 2010

Dona Guerda

Há certas coisas que vêm à minha mente de forma persistente. São pensamentos automáticos, involuntários, que povoam a minha cabeça quando não está focada em algum outro assunto. Não que eu pense neles o tempo todo, mas diariamente eles marcam presença. De forma geral, dizem respeito a pessoas; raras vezes a situações ou compromissos. Uma dessas pessoas é a minha mãe, dona Guerda, falecida faz 6 meses. Como hoje é dia de finados, resolvi escrever um pouco sobre ela, como forma de desabafo e, se possível, homenagem.
Devo confessar, em primeiro lugar, que não é fácil escrever sobre ela. Acredito que não tenho a visão imparcial e suficientemente esclarecida para poder fazer isso sem cair em erros de avaliação. Como filho, influenciado diretamente pelo convívio e criação, fica realmente difícil fazer uma descrição completa e justa. Dito isso, sigo adiante.
Uma das primeiras lembranças que tenho dela era da hora do meu banho. Primeiro numa banheirinha plástica cor-de-rosa, que seguido ia para o pátio, no gramado. Depois, numa maior e mais pesada, de metal, que ficava no banheiro mesmo. Lembro que, algumas vezes, não gostava quando ela enxaguava minha cabeça, ou por a água estar fria ou por escorrer xampu nos meus olhos. Lembro também que era ela que cortava meu cabelo, daquele jeito penico. Falando em cabelo, lembro que gostava de dormir mexendo nos cabelos dela, normalmente enrolando-os com meu indicador.
Quando ela me buscava da aula no 25, passávamos na loja de tecidos Sperb, que tinha um bebedouro de água bem gelada, que eu apreciava muito. Às vezes, nessa mesma volta para casa, ela me levava à padaria Brasil, para comer algum doce. Mas uma coisa de eu gostava muito mesmo era quando ela trazia, da banca do Araújo, um minipote de sorvete napolitano. Isso ela fazia quando voltava do trabalho e eu adorava muito. Acho que nesse período magoei-a pela primeira vez, pois devo ter deixado escapar, de alguma forma, que sentia um pouco de vergonha por ela ser mais velha que a média das outras mães e meus colegas acharem que se tratava da minha avó.
Acho que ela era uma mulher de criação bem germânica, no sentido que não sabia muito bem externar carinho e afeto aos filhos - fazia isso de uma forma subentendida, no dia-a-dia. Em compensação, nos rompantes de fúria e insatisfação, ela era bem agressiva, especialmente nas palavras ferinas. Acho que isso marcou muito a mim e aos meus irmãos, embora não fosse essa, certamente, sua intenção. No aspecto afetivo, ela deu carinho como aprendera a dar - com dedicação e abnegação.
A vida não foi muito generosa com ela. O casamento foi problemático, o dinheiro era sempre curto. Mesmo assim, ela não se entregava. Ajudava incansavelmente meu pai nas maluquices dele, consertando persianas, arrumando o carro - um Simca Rallye para lá de obsoleto, guardando quinquilharias. E cuidava, como podia e sabia, dos filhos. Quando ele morreu, achei que ela sucumbiria de tristeza. Mas seguiu forte, ainda que vez por outra se trancasse no banheiro para chorar. Não sei se chorava de saudade dele, ou de mágoa com a vida, ou das duas coisas.
Ela gostava de política, de história, de geografia. Sempre tinha uma opinião fundamentada sobre os assuntos atuais. Mostrava sua indignação com os governantes e seus desmandos e suas trapalhadas. Lembro que ela dizia, sem cerimônia, que fulano era 'lambe-cu do Fedorento", se referindo a algum repórter que elogiava o ex-presidente, que muito sabotou os parcos vencimentos que ela recebia da aposentadoria.
Ela gostava da língua francesa também, e quando soube que eu estava estudando, deve ter ficado bem feliz. Várias vezes nos telefonávamos e ela me perguntava em francês como eu estava. Mas ela, por outro lado, repudiava latim, e debochava com "qui, quae, quod, cuius, cuiis, cuius" quando eu falava nessa língua. Maldito método de aprendizado por tabuada que ela deve ter tido!
Acho que um erro que ela cometeu foi de se valorizar pouco. Era muito desleixada com suas próprias coisas, sua saúde, seu corpo. E não adiantava um filho tentar falar coisas desse tipo para ela; ela é que sabia, ela é que mandava. Aceitar a opinião contrária de um filho não era algo que fizesse com facilidade. Ao mesmo tempo, ela era generosa e desapegada - acho que abriu mão de muitas coisas em favor dos filhos, mas isso eu só percebi muito tardiamente. Por exemplo, acho que o dinheiro da venda do Simca foi, em boa parte, para a festa da minha 1ª comunhão. E quando ela se aventurou numa viagem de ônibus ao Paraguai comigo para eu comprar meu multímetro.
Muitas vezes me culpo por não ter sido mais atencioso, mais presente. Mas o ambiente familiar não ajudava muito e eu acabava fugindo, ou por pura covardia, ou para tentar me manter menos afetado pelas questões insolúveis. Com a morte dela, esse sentimento aparece com força, muitas vezes. Então tenho de me esforçar para lembrar que ela era, também, uma pessoa de difícil convívio, pouco flexível. A senilidade e o provável Alzheimer só acentuaram essas características, embora também tenham trazido uma afetuosidade pouco comum.
Somente no leito de morte eu disse que a amava, mas não sei se escutou. Queria ter alguma fé que me permitisse acreditar que ela ainda existe, em algum lugar, de alguma forma, e que está bem. E que ela soubesse o quanto eu a amo e o quanto ela faz falta. Sinto falta da sua voz suave ao telefone falando em francês; dos bolos que fazia nos finais de semana para minha visita, no período seguinte a minha mudança para Porto Alegre. Sinto saudade do seu colo, das suas opiniões, das suas histórias, que muitas vezes ouvi sem prestar a devida atenção.
Minha mãezinha, dona Guerda. Como ainda dói essa sua ausência. Eu não sei o que é a vida, eu não sei o que é a morte. Mas eu sei o que é amor de filho para uma mãe. E esse, a despeito da minha distância e ausência nesses últimos tempos, esse é grande, é o maior, é o máximo. Então é isso: de tudo sobre minha mãe, eu apenas acho, pois não tenho a capacidade de compreender tudo que se passou com ela. De tudo sobre minha mãe, eu sei que a amava.

Um comentário:

Edu disse...

Belas palavras. Penso que compreender tudo sobre as pessoas é impossível. Amar ou não, é o que importa.