2 de jun. de 2006

A Fúria da Gorda

Ainda me impressiono com a face oculta da amabilidade exagerada de certas pessoas. Pessoas dóceis, simpáticas, sociáveis e pacatas podem esconder sentimentos represados, desejos descabidos, energias desmedidas. Tudo do que precisam é um estopim, um momento oportuno e um motivo convincente para extravasar toda a concupiscência telúrica e mundana que não cabe mais em si. E isso ainda é mais forte, mais grave quando falamos de gordinhas, pois são retentoras potenciais de muito mais emoções veladas do que pessoas comuns.

Pois assim começou tudo. Vi Matheus conversando com a dócil moça, que parecia transitar muito bem entre os diversos grupos formados durante a noite. Fui até eles e integrei-me. Momentos depois estávamos somente ela e eu conversando. Percebi que tratava-se de alguém absorvente e aderente, daquelas que são capazes de sorver toda a atenção de uma pessoa a menos que sejam objetivamente dispensadas. Por esse motivo, evitei, durante toda a noite, dar atenção demasiada ou ainda permanecer só em companhia da avultada rapariga.

Assim, a noite foi passando. Não mais a interpelei diretamente, e notava apenas suas idas e vindas para cá e para lá. Nesses momentos sempre estava acompanhada de uma latinha de cerveja. Agora que os fatos passaram, a lucidez da distância temporal permite pensar e as emoções não mais gritam em meu peito, creio terem sido várias latinhas sucessivas.

Bom, voltei a perceber a Márcia – este era seu nome – quando já transtornada pela bebida e em incipiente ebulição de sentimentos, começara a praguejar contra Vasco por seu suposto descaso com a namorada, mortificada por leve embriaguez. E foi novamente com Vasco que se fez notar, desta vez fitando-o com olhares de fogo faiscante e ira repressora, após o menino-lobo tecer mais uma de suas metáforas escatológicas. Nesse momento meu olhar mirou ao infinito, porque a reprimenda ultrapassava qualquer limite de sanidade.

Depois disso os fatos sucederam-se numa avalanche caótica de terror violento. Fui aquecer-me junto à lareira, e vi que Márcia prontamente seguiu-me. Fingi-me adormecido no sofá, para que não travasse conversa com ela; cambaleou enquanto tentava acrescer folhas de jornal às toras abrasadas. Adormeci. Acordei com uma latinha gelada de cerveja nas minhas costas, arremessada pelo Vasco. Adormeci novamente; acordei agora com várias pessoas no entorno: Christian balbuciando coisas; Vasco não sei onde; Matheus e Márcia no sofá. “Napalm Death!” Matheus inclina-se para a frente, rindo (ele sempre ri, mas somente se inclina quando já está um tanto zonzo). Cerveja escorre sobre seu pescoço e cai no chão. Daniel passa e vê a cena de relance. Saímos para a churrasqueira.

Sucedem um pedido fogoso de desculpa, por parte da agressora, e a percepção, em Daniel, que Matheus vomitara em sua sala. Márcia cerca Matheus por todos os lados, “ela vem daqui, ela vem de lá”. Matheus senta-se e ri; Vasco e eu achamos que ele sucumbira aos seus fartos encantamentos.
Ela desaparece. Matheus suplica nossa ajuda e companhia. Decidimos ir aos potreiros, desbravar as matas e fugir da moça. Matheus, Daniel, Vasco e eu pegamos a fálica lanterna e embrenhamo-nos nos pastos do minifúndio. Ela vem. Ela nos segue. Ela pára na cerca. Paramos também. Uma paz breve toma nossas mentes. Focamo-la com a lanterna; está a rondar a cerca, como um cão de guarda nas portas do inferno. Deita-se. Fica escorada na cerca em posição obscena. Desaparece. Entra na casa. A luz do banheiro é acendida. No interior da casa, ouvem-se gemidos.

Foi com pavor repentino que notamos a luz do banheiro ser apagada. E ela volta. Sai para a área da churrasqueira, vem para a cerca. Pula a cerca. Corremos. Ela solta gritos ininteligíveis. Grunhidos. Uivos. Bate com as mãos em seus peitos saltitantes. Sacode os braços como se fossem asas. Ela percorre os prados em um trajeto desconexo, mas é fácil perceber que vem a nossa direção. Corremos. Corujas piam funestamente, como anunciando o pior. E ela continua vindo; tem o dom de enxergar na escuridão da noite. Continua correndo, grasnando, relinchando, gloterando.
Descemos a colina, em busca de algum lugar que sua visão não alcance. Ela some. Matheus volta um pouco colina acima, próximo da segunda cerca que puláramos. O pobre volta correndo apavorado: “Ela está vindo!”. Vamos mais adiante. Ela aproxima-se e convida com veemência para que adentremos no capão que está próximo. Negamos e decidimos voltar. A incansável Márcia vem atrás: “Voltem, galinhas! Vamos para o mato!” O sol já está nascendo; ela há de perder suas forças.
Quando chegamos à casa, uma sinistra névoa ainda cobria os vales a leste. Pensamos estar seguros na casa. Será que encontraríamos alguém vivo na casa? Ou ela teria matado um por um, em uma fúria punitiva?

Mais uma vez, lá vem ela. Ela vem. Aproxima-se. Decidimos subir no telhado da casa, pois Matheus a escutara confessando seu medo de altura. Ah, sábia decisão! Ali estaríamos ilhados, a espera de um helicóptero que viesse nos resgatar, mas estaríamos totalmente salvos daquele boitatá loiro que nos seguia.

Mas um dos efeitos interessantes do álcool no corpo humano é a perda gradativa das noções, dos limites, dos medos. Isso foi sobremaneira verdadeiro na gorda da cerca: ela subiu com determinação e velocidade no telhado da casa e, sem parecer ter qualquer vestígio de acrofobia. E numa tentativa de dança do acasalamento, correu atrás de Matheus circulando a clarabóia da casa. Resolvemos então, descer. Ela tentou subir na caixa d’água, mas devido às suas generosas formas não logrou alcançar o topo; ficou suspensa, com suas perninhas a balançar pelo vento da manhã. Era uma visão dantesca. Daniel, com razão, temeu por atos insensatos. Digo, por atos muito mais insensatos. Foi então resgatar a moça; levou-a para dentro da casa e a colocou a dormir.

O sol aquecia nossos rostos. Reunimo-nos em frente à bancada da churrasqueira. Sentei na própria bancada e via o sol descortinar o vale antes encoberto pela névoa matinal. Havia um certo clima de tranqüilidade.

Mas eis que ouço o ruído da porta a se abrir; sons próximos da mesa atrás de mim. Temo virar o rosto e olhar; segue-se um silêncio aterrador. Viro o rosto, apenas para confirmar que ela já entrara. Não. Ela está sentada atrás de mim, quase grudada ao meu corpo. O susto faz-me voar. Espatifar-me-ia no chão, não fosse o aparo providencial de Matheus. Começo a rir; nada faz mais sentido. Que o chão me engula e as árvores sequem. É um circo!


“Cuidado com a gorda,
que a gorda te pega.
Te pega daqui,
Te pega de lá.”

Nenhum comentário: