31 de jul. de 2006

Despedida

Havia certa feita um rapaz, considerado por muitos como bom amigo e, que reciprocamente, os considerava assim também. Era decerto companhia agradável, pois tinha bom senso de humor, conversas quase sempre inteligentes, ânimo prestimoso e apetite por todos os quitutes e bebidas que as noites pândegas favoreciam. Segundo relatos de pessoas próximas, havia um único senão: um teimoso resíduo de melancolia, uma fenda de sensibilidade que, vez por outra, aflorava e transformava seu semblante, mesmo que contra sua própria vontade, num conflito interno de sintomas externos.

Essa tristeza era resultado de medos e complexos que, desde muito, conviviam dentro de si. Tentara já algumas vezes sufocá-los, enclausurá-los no porão de seu íntimo, esperando que desvanecessem por inanição ou esquecimento. Mas eles não desapareciam; apenas mostravam-se inertes atrás das máscaras que fabricara. Eis que, num momento incerto, esses sentimentos transbordaram de si e, atônito, viu-se encharcado deles, sentindo-se pateticamente fragilizado.

Tantas passaram a ser suas angústias, que resolveu se isolar. Não que não mais desejasse conviver entre seus amigos, mas sabia que não conseguiria ser uma companhia agradável, tão absorto que estava daquela tristeza. A alegria e a felicidade alheia lhe frustravam ainda mais, não por inveja, tampouco por despeito, mas por sentir-se incapaz de ter tal bem para si, incapaz de ser amado, inviável como ser humano.

Precisava de um tempo para si, para organizar seus pensamentos, seus sentimentos. Sabia que a solução de seus problemas sairia forçosamente de sua própria cabeça. E ainda que outrem pudesse lhe socorrer, não saberia como pedir auxílio. Decidiu então comunicar tal afastamento a seus amigos.

Escreveria um texto, que seria lhes seria remetido, ou então publicado. Nesse texto, redigido em terceira pessoa para parecer impessoal e, talvez, ficcionista, falaria dos sentimentos de um rapaz, atormentado por medos e complexos que lhe consomem a razão, e do intuito daquele em se afastar, por considerar-se incapaz de desfrutar da boa companhia dos amigos. Não havia determinado, entretanto, se esperaria por comentários ao seu texto, posto que vários outros textos havia feito sem terem recebido nem elogios, nem críticas; nem mesmo sabia se realmente haviam sido lidos. Então nutria essa dúvida, talvez semelhante àquela do leitor que, surpreso com a revelação, hesitava em comentar tal desconcerto.

24 de jul. de 2006

Xangri-lá

Devo confessar que, quando conheci Xangri-lá, não lhe dei o devido valor. Achei um lugar bonito, mas comum. Não percebi nenhuma exuberância e tampouco pensei que aquele lugar pudesse me acolher. Penso mesmo que a maioria das pessoas também tem essa reação morna em relação a uma primeira impressão.
Mas Xangri-lá vai se mostrando aos poucos. Talvez a primeira coisa que se perceba é sua constante harmonia; uma alegria simples, porém marcante, emana daquela terra. Característica inconfundível é a mania local por jogos, apostas, disputas. Quem nunca se deixou levar por uma inocente disputa e acabou pagando os tradicionais "cinco pulinhos para um lado, e cinco para o outro"?
Xangri-lá é unica e bela em sua forma, por seus costumes; tem uma preguiça provinciana mas prazeres cosmopolitas. Descortinada sua beleza imaterial, percebe-se que sua geografia também tem um raro esplendor. O sol brilha sempre, sem ofuscar, e aquece quem lá esteja. As outras formas, por vezes incomuns, formam um conjunto muito harmonioso.
Então, num segundo momento, fiquei completamente apaixonado por Xangri-lá. Achei que aquele lugar fosse minha vida; mais do que isso, queria Xangri-lá apenas para mim, num exagero equivocado de minha parte. Mas aprendi que o que eu desejava era impossível de ter, e que de outra forma, talvez melhor e mais duradoura, estávamos já fortemente ligados.
O povo dali tem uma auto-consciência impressionante, e a conversa com qualquer um de seus habitantes comprova uma profunda sabedoria, como se cada um carregasse em si toda a experiência pessoal possível, e a prudência de toda a humanidade. Os nativos são assim: apesar de poderem, às vezes, parecer desinteressados, aconselham e ouvem como poucos irmãos seriam capazes.
Hoje tenho um belo casarão bem no coração de Xangri-lá, onde busco o abrigo contra as inquietudes da vida. Em Xangri-lá encontro paz, alegria, amigos. Não nasci naquelas terras, mas é lá que fica minha casa. Em Xangri-lá, sinto o conforto e a segurança de um gato que adormece enrodilhado no travesseiro de seu querido dono.

22 de jul. de 2006

Cansaço

Quando meu corpo está cansado, procuro repouso para recuperar as forças. Normalmente uma boa noite de sono é suficientemente revigorante. Mas tenho sentido um outro tipo de cansaço, um que as noites de sono não resolvem. Talvez eu esteja com a alma cansada, e o sono torna-se uma fuga. Mas é uma fuga em vão, porque a cada manhã está tudo ali, de novo, para me cansar novamente.
Assim, me cansa uma família desestruturada, de pessoas teimosas, possessivas, chantagistas e que convivem numa situação instável e insustentável já há muitos anos. Elas formam uma espantosa e intricada rede de intrigas e interesses, sediada em um terreno que já chego a amaldiçoar, embora tenha crescido entre suas árvores. Para sustentar tal desiquilíbrio usam das forças dos familiares que, por compaixão ou por medo de sentirem remorso, ainda mantêm vínculos. De minha parte, cada vez menos afetivos.
Também me cansa ter um amor que, por impossível, tornou-se doentio e patético. Tentei dele me desvecilhar mas não obtive êxito. Queima ainda dentro de mim como uma úlcera debochada, e me consome com tristeza momentos que deveriam ser apenas de alegria. E também por ele joguei-me novamente à solidão, a desimportância, ao esquecimento. Esqueci-me de mim mesmo, e vejo meu corpo se alastrar a cada dia do meu fatigante sedentarismo; e isso também me cansa.
Estou cansado da inércia que deixei me possuir, da estagnação infrutífera que se tornou minha vida. Cansado de ver o tempo passar mas as coisas não mudarem. Cansado de correr em círculos, ainda que às vezes pareçam elipses. Estou cansado da minha ironia, das minhas palavras virulentas que ferem quem amo. Cansado dos meus queixumes, das minhas ladainhas, que tampouco para a riqueza literária se prestam. Estou cansado de mim.

21 de jul. de 2006

Silogismo

Premissas:
  1. A vontade de se presentear uma pessoa é diretamente proporcional ao amor que se tem por ela.
  2. A grandeza do abraço recebido é inversamente proporcional ao quadrado do valor do presente dado.
Corolário:
  • Quanto mais se gosta de um amigo, mais sem graça é o abraço recebido!
Latine scribere bonum est quod ignoti non intelligunt. Eia!

19 de jul. de 2006

Vulgare Lucae nomen, sed rarae atque summae sunt eius bonitas, sapientia fidesque. Ille inter omnes pulchrius est.

17 de jul. de 2006

Festas

Se as eleições são a festa da democracia, então as guerras são a festa da civilização.

12 de jul. de 2006

O Que Não Deve Ser Feito

Eu estava bem disposto a escrever um texto a respeito do Estatuto da Igualdade Racial, que está para ser votado no Congresso Nacional. Mas achei um excelente artigo de Antônio Carlos Prado, chamado "Qual é a sua cor?", publicado em Revista IstoÉ, que diz muito do que eu penso a respeito.
Mas mesmo assim resumirei em alguns tópicos os principais problemas que vejo nesse projeto:
  1. O Estatuto oficializa uma discriminação que lutamos há décadas e diariamente para não ter. Inclusive está na Constituição Federal que as pessoas não podem ser discriminadas por raça, cor, credo, etc.
  2. O Estatuto cria uma uma separação racial maniqueísta, superficial e irreal ao classificar as pessoas em "negros" e "não-negros". Ignora décadas (ou mais) de miscigenação e de entrosamento cultural que houve no país. Ignora inclusive que os africanos vieram de nações e etnias diferentes, falavam línguas diferentes e tinham religiões diferentes.
  3. Dessa forma, usa a prerrogativa da reparação histórica para impor sistema de cotas, com percentuais completamente arbitrários. Esses percentuais podem rapidamente passar de mínimos exigidos para máximos praticados, causando o efeito contrário ao desejado.
  4. Catapultar pessoas por sua cor, e não pela sua qualificação, é medida paliativa que não resolve os problemas sociais graves existentes, como a deficiência e escassez da educação pública.
  5. O Estatuto ignora que um dos grandes méritos da democracia brasileira foi lançar à pobreza também os brancos, oriundos principalmente do êxodo rural. A que destino estará fadado um branco, pobre, estudante do ensino público?
  6. O Estatuto ignora que a cultura afro-descendente já é amplamente divulgada e a base mais forte da cultura nacional. É impossível pensar o Brasil sem lembrar das várias influências artísticas e culturais de origem africana, que já dominam a preferência dos grandes meios de comunicação.
  7. O Estatuto cria oficialmente três castas no país: a dos que conseguem as coisas por mérito próprio; a dos que conseguem por ser beneficiado pelas cotas; a dos que não conseguem nada.
  8. Aliás, como pode se chamar de "Estatudo da Igualdade", se prevê justamente o oposto, que é discriminação e favorecimento?
  9. Enfim, está na hora dos homens públicos pensarem com responsabilidade nas questões sociais, como planejamento familiar e controle de natalidade, amplo acesso à educação pública, gratuita e de qualidade, saneamento e urbanização das favelas. O resto é demagogia pura e simples.

11 de jul. de 2006

Aldeia Global

Certa vez li num livro de História que a cultura egípcia sobrevivera a quase todas invasões, menos à cristianização. Os cristãos acabaram com todo o esplendor daquela ancestral cultura camito-semítica, preservando apenas a língua, então registrada com uma variante do alfabeto grego, ao que se costumou denominar copta. Depois veio a invasão árabe e o Islã, e por ironia do destino, foram os cristãos que preservaram a antiga língua egípcia na sua liturgia e em traduções da Bíblia. Foi graças ao conhecimento de copta que Champollion pôde decifrar a escrita hieroglífica da pedra de Rosetta.
Enfim, o Egito virou uma república árabe, na língua, na escrita e na religião. Os árabes, outro povo semita, espalharam sua cultura mundo afora, e ela foi sobretudo absorvida na África Setentrional. Apesar da invasão árabe em vastas áreas da europa, a sua língua não vingou, exceção feita à Malta. Lá se fala o maltês, uma derivação do árabe, mas escrito com alfabeto latino, talvez porque a população seja majoritariamente católica.
Já na Ásia, terra de povos muito antigos e culturas muito bem arraigadas, a religião e a escrita venceram, mas não a língua. É o caso do Irã, país onde se fala persa, escrito agora com as letras escorridas importadas do árabe. Os persas, povo indo-europeu muito antigo, rezam agora voltados para Meca. O persa, por sinal, é uma língua próxima do urdu, também escrito com alfabeto árabe, língua oficial do Paquistão, que como sabemos, também é um país muçulmano. O interessante é que o urdu é praticamente a mesma língua que o hindi, língua oficial da Índia. Motivos religosos fizeram o primeiro ser influenciado pelo árabe e o persa, e o segundo pelo sânscrito, língua clássica e sagrada do bramanismo, principal religião dos indianos. Por sinal, a maioria das línguas faladas na Índia usam a escrita chamada devanagári, inclusive o próprio hindi.
Os turcos, por sua vez, são originários de tribos altaicas, parentes dos mongóis. Convertidos ao islamismo, já escreveram usando o alfabeto árabe, mas hoje o fazem com o romano. Assim como a maioria das repúblicas turcomanas da Ásia Central, embora algumas ainda usem o cirílico, resquício da época sob influência russa. Mesma influência que ainda justifica a escrita cirílica usada para o mongol.
A Rússia, sede de um dos patricarcados ortodoxos, é um país de maioria eslava. Os eslavos também são outro grupo indo-europeu. De uma forma geral, usam o cirílico quando são ortodoxos, e o romano quando são católicos. Assim, na Sérvia a língua que é escrita ao jeito de Moscou, na Croácia é escrita à moda de Roma. Aliás, as ex-repúblicas da Iugoslávia formam uma sopa étnico-religiosa muito peculiar.
Alheios a toda essa suruba cultural que virou o Velho Mundo, os nossos índios foram catequizados e viram suas culturas suplantadas pelo português crioulo do Brasil. Desprovidos de sua identidade, já foram vítimas de tentativas de escravização e de extinção. Agora vivem sob a política oficial de preservação, embora seja discutível o que se deseja preservar, pois são dependentes de uma sociedade que os coloca à sua margem. Hoje estão aí, vendendo cestinhos nas feiras, ou morrendo de tédio e cirrose alcoólica.

7 de jul. de 2006

Sufixos

Acho que um corredor de ônibus deveria ser um corredouro, a exemplo de bebedouro.
E acho que algo duradouro deveria ser durador, a exemplo de desolador.
Assim, seria mais lógico. E eu não me irritaria com essas coisas!