Singrando em diagonal entre casas brancas
O bispo excitado chegou ao alvo do seu desejo
E comeu o pequeno peão que se lhe insinuava.
Extasiado, olhou para o rei inimigo e balbuciou:
- Xeque-mate!
12 de nov. de 2010
10 de nov. de 2010
A Saga de Carina
Carina nasceu nos arredores de Moscou logo no início do século XX. Aderiu com furor à revolução russa de 1917 e, nos anos seguintes, engajou-se na implantação dos sovietes locais. Na juventude, não primava pela beleza: era magricela e tinha um nariz proeminente, que intimidava seus interlocutores. Logo percebeu que isso podia ter uma vantagem na política: adorava meter-se em celeumas e, mesmo sem embasamento, ganhava as discussões pelo desconforto que causava a sua aparência. E fazia uso disso com frequência, já que não tinha grande capacidade cognitiva para fazer a leitura e intelecção de textos longos; geralmente se apegava a uma ou outra frase, distorcia e retorcia à sua conveniência, e já saía panfleteando e buscando novas controvérsias.
Em 1918, com a transferência do «Pravda» para Moscou, conseguiu emprego na gráfica daquele jornal. Naquele mesmo ano, encontrou uma nova motivação para sua vida: a reforma ortográfica da língua russa. Comprou a mais recente edição do «Novo Vocabulário Ortográfico da Língua Russa» e do «Grande Dicionário Patriótico Russev da Língua Russa» e começou a devorá-los com sofreguidão doentia. Era quase capaz de saber todas as entradas que os dicionários registravam. Mais do que isso, sabia aquelas que neles não havia e que, portanto, no seu peculiar ponto de vista, eram palavras proibidas, invenções de pequenos burgueses.
Mas Carina tinha um problema: ao mesmo tempo que idolatrava os principais dicionários da língua, ela não sabia ao certo como usá-los. Acontece que, na língua russa, várias palavras femininas são muito parecidas com as masculinas, exceto pela terminação. Por exemplo, "costureira" é o feminino de "costureiro". Esse tipo de regra de formação do feminino é chamada de "formação natural do feminino". Esquisitices da língua russa. Outro problema, que fugia à compreensão limitada da abnegada Carina, é que os dicionários russos (da época) costumavam registrar somente as formas masculinas das palavras com formação natural do feminino. Assim, nos dicionários aparecia «sapateiro», mas não «sapateira». Assim também com "bombeiro", "mineiro", "sineiro", "seringueiro". Esquisitices dos dicionários russos.
Para ela, contudo, isso era motivo suficiente para decretar que uma mulher que confeccionasse ou reparasse sapatos era "um sapateiro" e não "uma sapateira" (tomei a liberdade didática de incluir o artigo indefinido para ressaltar o exemplo, embora sabemos que, em russo, não há artigos).
Dessa forma, ela foi se tornando cada vez mais obtusa e radical na sua compreensão do que era certo ou errado em termos de língua. Feminista convicta, achava que todas as profissões deveriam ter uma forma feminina própria, mesmo para os casos de substantivos que já significavam os dois gêneros. Por exemplo, quando foi eleita presidente do «Komsomol» local, quis ser chamada de "presidenta". E queria que isso fosse registrado nos dicionários, embora ambas as coisas não fossem realmente necessárias - nem o sufixo forçado em "-a", nem o registro específico nos dicionários. Para o bem da humanidade e das árvores, essa vontade de Carina nunca foi realizada.
No período de russificação da União Soviética comandado pelo grande irmão Stalin, Carina foi enviada para trabalhar na Ucrânia, numa agência postal de Kiev. Normalmente fazia trabalho interno mas, por vezes, também entregava cartas. Nessa época inscreveu-se na «Patrulha Ortográfica Pan-Soviética da Língua Russa» e, como incumbência na nova agremiação, sempre que saía às ruas para entregar cartas, também procurava erros de ortografia em placas ou cartazes que atentassem contra o que considerava legítimo e bonito. Fazia isso sempre com muita determinação, ainda que não fosse sua função precípua e usasse o uniforme amarelo da agência postal e o crachá verde que a identificava como funcionária do correio.
Infelizmente, aqueles foram anos difíceis. Junto com a russificação e a coletivização forçada do campo, veio a Grande Fome - a «Holodomor» dos ucranianos. Mais do que um grande colapso do abastecimento de alimentos, foi uma estratégia usada por Stalin para dobrar e vencer a resistência na "Pequena Rússia". Estima-se que até 10 milhões de ucranianos tenham sido vitimados pela fome devastadora.
Um dia, saindo excepcionalmente para entregar cartas, Carina encontrou um cartaz com o dizer: "Katerina Gruberova - torneira mecânica". Prontamente consultou o «Novíssimo Vocabulário Ortográfico da Lìngua Russa» e verificou que, no verbete "torneira", não constava o sentido de "mulher que trabalha com tornearia", mas apenas o de "tubo com chave por onde escoa líquido". Ficou ultrajada, porque era uma profissão em ascensão no âmbito feminino - cada vez mais mulheres operavam tornos - mas não tinha forma adequada ao gênero registrada no seu livro sagrado. Ao mesmo tempo, também ficou exultante, porque poderia denunciar a tal da Katerina por usar uma forma feminina que não existia, não era abonada pelo vocabulário. Pensou que Katerina era muito ignorante, e que devia ter escrito "torneiro mecânico" no seu anúncio, mesmo sendo mulher.
Assim, entusiasmada, saiu correndo para denunciar Katerina ao posto local da «KGB», quando deparou-se com um homem rústico, de barba hirsuta e negra e de olhos amendoados. Ele lhe disse que se chamava Ivan, e que trabalhava no «Pravda» de Kiev; nas horas vagas era cineasta amador, mas nenhuma das ocupações lhe rendia proventos suficientes para comprar comida no mercado negro; estava muito faminto, apesar de sua saliente barriga. Desesperado, fitou-a com certa fúria e disse:
- Eu quero comer a carteira.
Carina ficou de súbito espantada, mas não tinha dúvida sobre o significado do que ouvira. Apiedou-se e, mesmo sem entender como um homem poderia comer um artefato sujo de couro, sacou de seu bolso a carteira para oferecer ao pobre homem. Pensou, na verdade, que ele queria dinheiro para comprar comida. Depois, limpou sua testa dos perdigotos que Ivan lhe arremessara com a manga do seu uniforme amarelo. Ficou parada, risonha, como que contemplando sua boa ação.
Mas todo o entendimento de Carina estava errado. Ivan sacou de sua calça uma lança feita de madeira, listrada em branco e preto como se tivesse sido extraída de uma claquete, e com esse instrumento rudimentar desferiu várias estocadas contra Carina, que caiu aos espasmos sobre a poça de sangue que lhe escorria. Ele, então, prostrou-se junto ao corpo e, com o mesmo instrumento, passou a dilacerar a vítima, para comer pedaços crus de sua carne magra e suculenta. E assim foi que morreu Carina, a patrulheira ortográfica que trabalhava como carteira, embora isso não fosse registrado no dicionário: morreu sem entender por que havia sido devorada.
Em 1918, com a transferência do «Pravda» para Moscou, conseguiu emprego na gráfica daquele jornal. Naquele mesmo ano, encontrou uma nova motivação para sua vida: a reforma ortográfica da língua russa. Comprou a mais recente edição do «Novo Vocabulário Ortográfico da Língua Russa» e do «Grande Dicionário Patriótico Russev da Língua Russa» e começou a devorá-los com sofreguidão doentia. Era quase capaz de saber todas as entradas que os dicionários registravam. Mais do que isso, sabia aquelas que neles não havia e que, portanto, no seu peculiar ponto de vista, eram palavras proibidas, invenções de pequenos burgueses.
Mas Carina tinha um problema: ao mesmo tempo que idolatrava os principais dicionários da língua, ela não sabia ao certo como usá-los. Acontece que, na língua russa, várias palavras femininas são muito parecidas com as masculinas, exceto pela terminação. Por exemplo, "costureira" é o feminino de "costureiro". Esse tipo de regra de formação do feminino é chamada de "formação natural do feminino". Esquisitices da língua russa. Outro problema, que fugia à compreensão limitada da abnegada Carina, é que os dicionários russos (da época) costumavam registrar somente as formas masculinas das palavras com formação natural do feminino. Assim, nos dicionários aparecia «sapateiro», mas não «sapateira». Assim também com "bombeiro", "mineiro", "sineiro", "seringueiro". Esquisitices dos dicionários russos.
Para ela, contudo, isso era motivo suficiente para decretar que uma mulher que confeccionasse ou reparasse sapatos era "um sapateiro" e não "uma sapateira" (tomei a liberdade didática de incluir o artigo indefinido para ressaltar o exemplo, embora sabemos que, em russo, não há artigos).
Dessa forma, ela foi se tornando cada vez mais obtusa e radical na sua compreensão do que era certo ou errado em termos de língua. Feminista convicta, achava que todas as profissões deveriam ter uma forma feminina própria, mesmo para os casos de substantivos que já significavam os dois gêneros. Por exemplo, quando foi eleita presidente do «Komsomol» local, quis ser chamada de "presidenta". E queria que isso fosse registrado nos dicionários, embora ambas as coisas não fossem realmente necessárias - nem o sufixo forçado em "-a", nem o registro específico nos dicionários. Para o bem da humanidade e das árvores, essa vontade de Carina nunca foi realizada.
No período de russificação da União Soviética comandado pelo grande irmão Stalin, Carina foi enviada para trabalhar na Ucrânia, numa agência postal de Kiev. Normalmente fazia trabalho interno mas, por vezes, também entregava cartas. Nessa época inscreveu-se na «Patrulha Ortográfica Pan-Soviética da Língua Russa» e, como incumbência na nova agremiação, sempre que saía às ruas para entregar cartas, também procurava erros de ortografia em placas ou cartazes que atentassem contra o que considerava legítimo e bonito. Fazia isso sempre com muita determinação, ainda que não fosse sua função precípua e usasse o uniforme amarelo da agência postal e o crachá verde que a identificava como funcionária do correio.
Infelizmente, aqueles foram anos difíceis. Junto com a russificação e a coletivização forçada do campo, veio a Grande Fome - a «Holodomor» dos ucranianos. Mais do que um grande colapso do abastecimento de alimentos, foi uma estratégia usada por Stalin para dobrar e vencer a resistência na "Pequena Rússia". Estima-se que até 10 milhões de ucranianos tenham sido vitimados pela fome devastadora.
Um dia, saindo excepcionalmente para entregar cartas, Carina encontrou um cartaz com o dizer: "Katerina Gruberova - torneira mecânica". Prontamente consultou o «Novíssimo Vocabulário Ortográfico da Lìngua Russa» e verificou que, no verbete "torneira", não constava o sentido de "mulher que trabalha com tornearia", mas apenas o de "tubo com chave por onde escoa líquido". Ficou ultrajada, porque era uma profissão em ascensão no âmbito feminino - cada vez mais mulheres operavam tornos - mas não tinha forma adequada ao gênero registrada no seu livro sagrado. Ao mesmo tempo, também ficou exultante, porque poderia denunciar a tal da Katerina por usar uma forma feminina que não existia, não era abonada pelo vocabulário. Pensou que Katerina era muito ignorante, e que devia ter escrito "torneiro mecânico" no seu anúncio, mesmo sendo mulher.
Assim, entusiasmada, saiu correndo para denunciar Katerina ao posto local da «KGB», quando deparou-se com um homem rústico, de barba hirsuta e negra e de olhos amendoados. Ele lhe disse que se chamava Ivan, e que trabalhava no «Pravda» de Kiev; nas horas vagas era cineasta amador, mas nenhuma das ocupações lhe rendia proventos suficientes para comprar comida no mercado negro; estava muito faminto, apesar de sua saliente barriga. Desesperado, fitou-a com certa fúria e disse:
- Eu quero comer a carteira.
Carina ficou de súbito espantada, mas não tinha dúvida sobre o significado do que ouvira. Apiedou-se e, mesmo sem entender como um homem poderia comer um artefato sujo de couro, sacou de seu bolso a carteira para oferecer ao pobre homem. Pensou, na verdade, que ele queria dinheiro para comprar comida. Depois, limpou sua testa dos perdigotos que Ivan lhe arremessara com a manga do seu uniforme amarelo. Ficou parada, risonha, como que contemplando sua boa ação.
Mas todo o entendimento de Carina estava errado. Ivan sacou de sua calça uma lança feita de madeira, listrada em branco e preto como se tivesse sido extraída de uma claquete, e com esse instrumento rudimentar desferiu várias estocadas contra Carina, que caiu aos espasmos sobre a poça de sangue que lhe escorria. Ele, então, prostrou-se junto ao corpo e, com o mesmo instrumento, passou a dilacerar a vítima, para comer pedaços crus de sua carne magra e suculenta. E assim foi que morreu Carina, a patrulheira ortográfica que trabalhava como carteira, embora isso não fosse registrado no dicionário: morreu sem entender por que havia sido devorada.
2 de nov. de 2010
Dona Guerda
Há certas coisas que vêm à minha mente de forma persistente. São pensamentos automáticos, involuntários, que povoam a minha cabeça quando não está focada em algum outro assunto. Não que eu pense neles o tempo todo, mas diariamente eles marcam presença. De forma geral, dizem respeito a pessoas; raras vezes a situações ou compromissos. Uma dessas pessoas é a minha mãe, dona Guerda, falecida faz 6 meses. Como hoje é dia de finados, resolvi escrever um pouco sobre ela, como forma de desabafo e, se possível, homenagem.
Devo confessar, em primeiro lugar, que não é fácil escrever sobre ela. Acredito que não tenho a visão imparcial e suficientemente esclarecida para poder fazer isso sem cair em erros de avaliação. Como filho, influenciado diretamente pelo convívio e criação, fica realmente difícil fazer uma descrição completa e justa. Dito isso, sigo adiante.
Uma das primeiras lembranças que tenho dela era da hora do meu banho. Primeiro numa banheirinha plástica cor-de-rosa, que seguido ia para o pátio, no gramado. Depois, numa maior e mais pesada, de metal, que ficava no banheiro mesmo. Lembro que, algumas vezes, não gostava quando ela enxaguava minha cabeça, ou por a água estar fria ou por escorrer xampu nos meus olhos. Lembro também que era ela que cortava meu cabelo, daquele jeito penico. Falando em cabelo, lembro que gostava de dormir mexendo nos cabelos dela, normalmente enrolando-os com meu indicador.
Quando ela me buscava da aula no 25, passávamos na loja de tecidos Sperb, que tinha um bebedouro de água bem gelada, que eu apreciava muito. Às vezes, nessa mesma volta para casa, ela me levava à padaria Brasil, para comer algum doce. Mas uma coisa de eu gostava muito mesmo era quando ela trazia, da banca do Araújo, um minipote de sorvete napolitano. Isso ela fazia quando voltava do trabalho e eu adorava muito. Acho que nesse período magoei-a pela primeira vez, pois devo ter deixado escapar, de alguma forma, que sentia um pouco de vergonha por ela ser mais velha que a média das outras mães e meus colegas acharem que se tratava da minha avó.
Acho que ela era uma mulher de criação bem germânica, no sentido que não sabia muito bem externar carinho e afeto aos filhos - fazia isso de uma forma subentendida, no dia-a-dia. Em compensação, nos rompantes de fúria e insatisfação, ela era bem agressiva, especialmente nas palavras ferinas. Acho que isso marcou muito a mim e aos meus irmãos, embora não fosse essa, certamente, sua intenção. No aspecto afetivo, ela deu carinho como aprendera a dar - com dedicação e abnegação.
A vida não foi muito generosa com ela. O casamento foi problemático, o dinheiro era sempre curto. Mesmo assim, ela não se entregava. Ajudava incansavelmente meu pai nas maluquices dele, consertando persianas, arrumando o carro - um Simca Rallye para lá de obsoleto, guardando quinquilharias. E cuidava, como podia e sabia, dos filhos. Quando ele morreu, achei que ela sucumbiria de tristeza. Mas seguiu forte, ainda que vez por outra se trancasse no banheiro para chorar. Não sei se chorava de saudade dele, ou de mágoa com a vida, ou das duas coisas.
Ela gostava de política, de história, de geografia. Sempre tinha uma opinião fundamentada sobre os assuntos atuais. Mostrava sua indignação com os governantes e seus desmandos e suas trapalhadas. Lembro que ela dizia, sem cerimônia, que fulano era 'lambe-cu do Fedorento", se referindo a algum repórter que elogiava o ex-presidente, que muito sabotou os parcos vencimentos que ela recebia da aposentadoria.
Ela gostava da língua francesa também, e quando soube que eu estava estudando, deve ter ficado bem feliz. Várias vezes nos telefonávamos e ela me perguntava em francês como eu estava. Mas ela, por outro lado, repudiava latim, e debochava com "qui, quae, quod, cuius, cuiis, cuius" quando eu falava nessa língua. Maldito método de aprendizado por tabuada que ela deve ter tido!
Acho que um erro que ela cometeu foi de se valorizar pouco. Era muito desleixada com suas próprias coisas, sua saúde, seu corpo. E não adiantava um filho tentar falar coisas desse tipo para ela; ela é que sabia, ela é que mandava. Aceitar a opinião contrária de um filho não era algo que fizesse com facilidade. Ao mesmo tempo, ela era generosa e desapegada - acho que abriu mão de muitas coisas em favor dos filhos, mas isso eu só percebi muito tardiamente. Por exemplo, acho que o dinheiro da venda do Simca foi, em boa parte, para a festa da minha 1ª comunhão. E quando ela se aventurou numa viagem de ônibus ao Paraguai comigo para eu comprar meu multímetro.
Muitas vezes me culpo por não ter sido mais atencioso, mais presente. Mas o ambiente familiar não ajudava muito e eu acabava fugindo, ou por pura covardia, ou para tentar me manter menos afetado pelas questões insolúveis. Com a morte dela, esse sentimento aparece com força, muitas vezes. Então tenho de me esforçar para lembrar que ela era, também, uma pessoa de difícil convívio, pouco flexível. A senilidade e o provável Alzheimer só acentuaram essas características, embora também tenham trazido uma afetuosidade pouco comum.
Somente no leito de morte eu disse que a amava, mas não sei se escutou. Queria ter alguma fé que me permitisse acreditar que ela ainda existe, em algum lugar, de alguma forma, e que está bem. E que ela soubesse o quanto eu a amo e o quanto ela faz falta. Sinto falta da sua voz suave ao telefone falando em francês; dos bolos que fazia nos finais de semana para minha visita, no período seguinte a minha mudança para Porto Alegre. Sinto saudade do seu colo, das suas opiniões, das suas histórias, que muitas vezes ouvi sem prestar a devida atenção.
Minha mãezinha, dona Guerda. Como ainda dói essa sua ausência. Eu não sei o que é a vida, eu não sei o que é a morte. Mas eu sei o que é amor de filho para uma mãe. E esse, a despeito da minha distância e ausência nesses últimos tempos, esse é grande, é o maior, é o máximo. Então é isso: de tudo sobre minha mãe, eu apenas acho, pois não tenho a capacidade de compreender tudo que se passou com ela. De tudo sobre minha mãe, eu sei que a amava.
Devo confessar, em primeiro lugar, que não é fácil escrever sobre ela. Acredito que não tenho a visão imparcial e suficientemente esclarecida para poder fazer isso sem cair em erros de avaliação. Como filho, influenciado diretamente pelo convívio e criação, fica realmente difícil fazer uma descrição completa e justa. Dito isso, sigo adiante.
Uma das primeiras lembranças que tenho dela era da hora do meu banho. Primeiro numa banheirinha plástica cor-de-rosa, que seguido ia para o pátio, no gramado. Depois, numa maior e mais pesada, de metal, que ficava no banheiro mesmo. Lembro que, algumas vezes, não gostava quando ela enxaguava minha cabeça, ou por a água estar fria ou por escorrer xampu nos meus olhos. Lembro também que era ela que cortava meu cabelo, daquele jeito penico. Falando em cabelo, lembro que gostava de dormir mexendo nos cabelos dela, normalmente enrolando-os com meu indicador.
Quando ela me buscava da aula no 25, passávamos na loja de tecidos Sperb, que tinha um bebedouro de água bem gelada, que eu apreciava muito. Às vezes, nessa mesma volta para casa, ela me levava à padaria Brasil, para comer algum doce. Mas uma coisa de eu gostava muito mesmo era quando ela trazia, da banca do Araújo, um minipote de sorvete napolitano. Isso ela fazia quando voltava do trabalho e eu adorava muito. Acho que nesse período magoei-a pela primeira vez, pois devo ter deixado escapar, de alguma forma, que sentia um pouco de vergonha por ela ser mais velha que a média das outras mães e meus colegas acharem que se tratava da minha avó.
Acho que ela era uma mulher de criação bem germânica, no sentido que não sabia muito bem externar carinho e afeto aos filhos - fazia isso de uma forma subentendida, no dia-a-dia. Em compensação, nos rompantes de fúria e insatisfação, ela era bem agressiva, especialmente nas palavras ferinas. Acho que isso marcou muito a mim e aos meus irmãos, embora não fosse essa, certamente, sua intenção. No aspecto afetivo, ela deu carinho como aprendera a dar - com dedicação e abnegação.
A vida não foi muito generosa com ela. O casamento foi problemático, o dinheiro era sempre curto. Mesmo assim, ela não se entregava. Ajudava incansavelmente meu pai nas maluquices dele, consertando persianas, arrumando o carro - um Simca Rallye para lá de obsoleto, guardando quinquilharias. E cuidava, como podia e sabia, dos filhos. Quando ele morreu, achei que ela sucumbiria de tristeza. Mas seguiu forte, ainda que vez por outra se trancasse no banheiro para chorar. Não sei se chorava de saudade dele, ou de mágoa com a vida, ou das duas coisas.
Ela gostava de política, de história, de geografia. Sempre tinha uma opinião fundamentada sobre os assuntos atuais. Mostrava sua indignação com os governantes e seus desmandos e suas trapalhadas. Lembro que ela dizia, sem cerimônia, que fulano era 'lambe-cu do Fedorento", se referindo a algum repórter que elogiava o ex-presidente, que muito sabotou os parcos vencimentos que ela recebia da aposentadoria.
Ela gostava da língua francesa também, e quando soube que eu estava estudando, deve ter ficado bem feliz. Várias vezes nos telefonávamos e ela me perguntava em francês como eu estava. Mas ela, por outro lado, repudiava latim, e debochava com "qui, quae, quod, cuius, cuiis, cuius" quando eu falava nessa língua. Maldito método de aprendizado por tabuada que ela deve ter tido!
Acho que um erro que ela cometeu foi de se valorizar pouco. Era muito desleixada com suas próprias coisas, sua saúde, seu corpo. E não adiantava um filho tentar falar coisas desse tipo para ela; ela é que sabia, ela é que mandava. Aceitar a opinião contrária de um filho não era algo que fizesse com facilidade. Ao mesmo tempo, ela era generosa e desapegada - acho que abriu mão de muitas coisas em favor dos filhos, mas isso eu só percebi muito tardiamente. Por exemplo, acho que o dinheiro da venda do Simca foi, em boa parte, para a festa da minha 1ª comunhão. E quando ela se aventurou numa viagem de ônibus ao Paraguai comigo para eu comprar meu multímetro.
Muitas vezes me culpo por não ter sido mais atencioso, mais presente. Mas o ambiente familiar não ajudava muito e eu acabava fugindo, ou por pura covardia, ou para tentar me manter menos afetado pelas questões insolúveis. Com a morte dela, esse sentimento aparece com força, muitas vezes. Então tenho de me esforçar para lembrar que ela era, também, uma pessoa de difícil convívio, pouco flexível. A senilidade e o provável Alzheimer só acentuaram essas características, embora também tenham trazido uma afetuosidade pouco comum.
Somente no leito de morte eu disse que a amava, mas não sei se escutou. Queria ter alguma fé que me permitisse acreditar que ela ainda existe, em algum lugar, de alguma forma, e que está bem. E que ela soubesse o quanto eu a amo e o quanto ela faz falta. Sinto falta da sua voz suave ao telefone falando em francês; dos bolos que fazia nos finais de semana para minha visita, no período seguinte a minha mudança para Porto Alegre. Sinto saudade do seu colo, das suas opiniões, das suas histórias, que muitas vezes ouvi sem prestar a devida atenção.
Minha mãezinha, dona Guerda. Como ainda dói essa sua ausência. Eu não sei o que é a vida, eu não sei o que é a morte. Mas eu sei o que é amor de filho para uma mãe. E esse, a despeito da minha distância e ausência nesses últimos tempos, esse é grande, é o maior, é o máximo. Então é isso: de tudo sobre minha mãe, eu apenas acho, pois não tenho a capacidade de compreender tudo que se passou com ela. De tudo sobre minha mãe, eu sei que a amava.
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