19 de out. de 2007

Estado e religião

Sou católico de batismo, mas não professo a fé há muitos anos. Entre os vários rótulos que podem me atribuir, considero "agnóstico" o menos pretensioso. Dito isso, quero abordar um assunto em que penso seguidamente: a relação entre estado e religião. Começo o texto refletindo sobre as causas da tão propalada harmonia inter-religiosa que existe no país.
É fato que ela existe. Mas não sei se sua causa principal seja, de fato, a boa vontade ou a tolerância inata do brasileiro. Já fomos um país oficialmente católico e ainda o somos estatisticamente. Mas que tipo de catolicismo praticamos (pretérito perfeito e presente) aqui? Um catolicismo lânguido, sem muita vontade com suas obrigações, ao exemplo do que somos como sociedade em geral. Parece-me que até na religião tratamos as questões com "jeitinho".
Muito se tem falado sobre essa praga cultural nacional, que vai do burlesco furar fila do cinema até os grandes escândalos de corrupção em Brasília, passando pela cumplicidade com a pirataria e o contrabando e pela complacência, por vezes pasmada, a tudo isso. Essa indiferença, quase generalizada, que faz com que não batalhemos cotidianamente por uma sociedade melhor, calcada no exemplo individual. Talvez esse "tanto fez, tanto faz", transposto ao campo religioso, é que tenha nos levado a essa convivência harmoniosa. Sim, porque me lembro muito bem de ler, nas cartilhas de catequese e de crisma, condenações veementes a outros tipos de manifestações religiosas, mormente ao espiritismo e ao candomblé. Por que essas condenações nunca tiveram um efeito belicoso? Creio que é pelo mesmo motivo que leva o católico brasileiro médio a não ir à missa, a não comungar, a não confessar, a não pagar o dízimo. Se for assim, o jeitinho, através de seu viés de indolência religiosa, acabou por produzir a boa convivência entre credos tão distintos,
inclusive o sincretismo.
Outro ponto que me chama atenção é a questão dos direitos civis. Temos avançado muito nesse campo, e há muito ainda a ser discutido e decidido. Mas fazemos isso a despeito das orientações de Roma. Divórcio e inseminação artificial são alguns dos exemplos que me vêm à memória agora. Mas vale dizer que as âncoras papais não são os únicos entraves ao avanço das conquistas civis. Lembro um caso de médicos que precisaram de garantir na justiça uma transfusão de sangue para um menino criticamente doente, porque a agremiação religiosa de seus pais considerava tal ato ofensivo a deus, o que os fez proibirem a transfusão.
Isso posto, vale dizer que estamos muito mais avançados em jurisprudência do que em legislação, uma vez que nossos legisladores têm o débito moral com seus eleitores e, muitas vezes, não avançam em questões cruciais por temerem comprometer suas reeleições. Nesse contexto, causa-me preocupação o crescimento de certas linhas neopentecostais efusivas, especialmente quando associadas a meios de comunicação em massa. Em suas pregações, os pastores e bispos, muitos autoproclamados, não escondem seu desamor ao catolicismo, à umbanda e a tudo que for diferente e não lhes pagar o dízimo. E sua condenação veemente atinge, obviamente, tudo que não se encaixar nas leituras inspiradas que fazem da bíblia, muitas vezes literais.
Diante desse cenário, cabe a pergunta: a harmonia religosa será mantida caso cristãos exaltados passem a ser maioria da população? Até que ponto os direitos civis estabelecidos estão garantidos? Até onde é possível manter um estado de direito - e de fato - laico, se a população entrar em ebulição ou conflitos religiosos? É certo que o estado brasileiro ainda sofre de lacunas na sua laicidade, como os feriados católicos e os crucifixos suspensos na maior parte das repartições públicas. Ou ainda como a lei estadual que permite sacrifício de animais para oferenda em cerimônias de origem africana. Mas felizmente, a ingerência religiosa acaba por aí. Por enquanto.

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